Extrato do livro “Obàtálá e a Criação do Mundo Iorubá”, de Luiz L. Marins, (a ser publicado) cujo capítulo visa esclarecer o uso da palavra ìtàn (história) como sinônimo de ese (verso) no eléseese “Òrìsà Dídá Ayé”, poema da criação do mundo iorubá, do Odù Ejìogbè.
Algumas palavras iorubás em virtude das convenções gráficas adotadas depois da colonização europeia vem recebendo importantes modificações conceituais, sendo que muitos textos escritos em línguas europeias que usam palavras iorubás apresentam, sem perceber, estas modificações, criando alguns embaraços. Uma delas é a palavra ìtàn (história).
Em língua portuguesa uma história geralmente é contada em prosa, mas pode ser contada em verso (como no caso de “Os Lusíadas”, de Camões) sem deixar de ser ou ter o conceito de história, portanto, em português, uma história pode ser em prosa ou verso, mas em iorubá isto não ocorre, pois a palavra iorubá para história é ìtàn, enquanto que a palavra ese é utilizada para verso.
Como o idioma iorubá era originalmente ágrafo, talvez seja este o motivo que os dicionários não registraram uma palavra nesse idioma que tenha os dois conceitos, tal qual ocorre para “história”, story (inglês) e histoire (frances).
O primeiro ese (verso) Ìtàn àtowódówo[1], informa que o eléseese[2] Òrìsà Dídá Ayé é uma “história tradicional passada de geração para geração”. De acordo com a gramática iorubá, isto é um contrassenso, um poema jamais será uma história, e vice-versa, o que nos leva a um estudo um pouco mais profundo neste assunto.
Sobre o conceito iorubá de prosa e poesia, Olatunde Olatunji (in Afolayan, 1982:70) fornece uma breve definição:
“A distinção entre prosa e poesia iorubá não é absoluta, mas relativa. Poesia iorubá pode ser falada, entoada ou cantada, com ênfase na sua forma artística, paralelismo, jogo de palavras, repetição, contraponto tonal, combinação léxica, etc; possui itens de léxico arcaico, distorções ou divergências tonais e gramaticais, socialmente e tradicionalmente fixo em um assunto definido. A prosa iorubá, por outro lado, coloca ênfase sobre um assunto definido, o qual é individualmente escolhido conforme a linguagem comum de falar onde a inteligibilidade é primordial. Contudo, nada demais lembrar que a distinção não é absoluta. A linguagem e o ritmo da prosa, entretanto, formam a base de fundação do verso”
Na diáspora afrobrasileira a palavra ese não é usual, ficando restrita aos meios intelectuais, enquanto que ìtàn, ao contrário, é muito conhecida, mas adquiriu o conceito utilizado em português para palavra “história”; assim, arriscamos a afirmar que a palavra iorubá ìtàn está aculturada. A seguir, vamos dar alguns exemplos disso.
Pierre Verger (1972: 7, apud, Braga, 1988: 27) na transcrição abaixo, relata um encontro mensal dos babalaôs. Veja que Verger usa a palavra “história” quando está referindo-se aos versos de Ifá, percebendo-se claramente embutido o conceito europeu da palavra “história” sobre a palavra “verso” (ese). Talvez Verger nem percebeu isso.
“Este ensino constante se faz por meio da troca mútua do saber entre os babalaôs, ao longo de numerosas reuniões em que os adivinhos se encontram para discutir consultas que lhes são feitas sobre os mais diversos casos. Eles se reúnem também cada dezesseis dias em assembleias organizadas em todas as cidades, no dia do segredo (ojó awô), a cada quatro semanas, sendo a semana iorubá de quatro dias. Nessas ocasiões, após uma refeição comunal, os babalaôs relatam cantando algumas histórias de Ifá. Um dos sacerdotes conta, em solo, as estórias que são retomadas, frase a frase, pelos demais adivinhos. É nesse momento que eles exibem sua erudição. Aquele que inicia o canto tenta ofuscar seus companheiros com um relato novo e desconhecido para eles, pois se trata de uma grande glória assumir o papel de mestre e escuta-los repetir docilmente, verso por verso, uma nova história. É assim que os babalaôs presentes transmitem uns aos outros a sua ciência.”
Wande Abimbolá (1976: 43) referindo-se aos ese-ifá também utiliza o conceito inglês da palavra story, assim conceituando-os:
“Ese Ifá trata de todos os assuntos. Ele trata de historia, geografia, religião, musica e filosofia. Ese Ifá pode ser uma simples historia sobre um homem que está indo viajar e está querendo saber o que fazer para que a viajem tenha sucesso. Ele pode ser uma história altamente filosófica mostrando os méritos e deméritos da monogamia. Ele pode tratar da fundação de uma cidade. Não existe limite para os assuntos que ese Ifá pode tratar.” (Abimbola, 1976:32, apud, Abimbola, 1965:14). [o grifo é nosso]
“Ese Ifá tem uma estrutura original que o distingue de todas as outras formas de literatura oral iorubá. Uma vez que o ese Ifá é histórico em seu conteúdo, sua estrutura é também baseada sobre a sua natureza histórica.”
Juana Elbein, (1993: 149) em “Os Nagô e Morte” segue a mesma linha de pensamento de Verger e Abimbola, quando referindo-se a um extenso eléseese do Odù Osetura, assim o apresenta:
“Esta é a história de Òsetùwá tal qual é revelado pelo Odù Ifá. Diz a história como Èsù chegou a transportar todas as oferendas aos pés de Olódùmarè, fazendo aceita-las, e como Èsù se tornou Òjíse-ebo, o encarregado e transportador de oferendas, na terra e no òrun. Òsetùá é o oráculo que relata claramente o desenvolvimento desta história da maneira como segue. Diz ele:”
No mesmo livro, agora na página 171, Juana Elbein apresenta interessante registro etnográfico da tradição oral por ela recolhida em campo de pesquisa na Nigéria, o qual mostra a palavra ìtàn no primeiro verso do eléseese na própria versão original iorubá, ou seja, a língua nativa já utiliza
“história” como sinônimo de “verso”:
Odù Osetura
1. Itàan Èsù!2. Níbi tí Èsù gbé gba àgbà
[...]
Assim, do ponto de vista técnico, embora aculturada, a forma que utilizamos se faz correta, uma vez que o uso que fazemos da palavra ìtàn dentro de um ese procura atender aos conceitos da diáspora dos falantes de língua portuguesa, porém, mantendo tanto quando possível a forma iorubá tradicional na sua construção poética. Desta forma, podemos afirmar que se trata de um “poema de versos livres”.
[1] [1] O poema Òrìsà Dídá Ayé (Orixá criou o mundo) é composto por 396 ese (versos), sendo este o verso nº 1.
[2] [2] Uma coletanea de versos, um poema
Por Luiz L. Marins
Algumas palavras iorubás em virtude das convenções gráficas adotadas depois da colonização europeia vem recebendo importantes modificações conceituais, sendo que muitos textos escritos em línguas europeias que usam palavras iorubás apresentam, sem perceber, estas modificações, criando alguns embaraços. Uma delas é a palavra ìtàn (história).
Em língua portuguesa uma história geralmente é contada em prosa, mas pode ser contada em verso (como no caso de “Os Lusíadas”, de Camões) sem deixar de ser ou ter o conceito de história, portanto, em português, uma história pode ser em prosa ou verso, mas em iorubá isto não ocorre, pois a palavra iorubá para história é ìtàn, enquanto que a palavra ese é utilizada para verso.
Como o idioma iorubá era originalmente ágrafo, talvez seja este o motivo que os dicionários não registraram uma palavra nesse idioma que tenha os dois conceitos, tal qual ocorre para “história”, story (inglês) e histoire (frances).
O primeiro ese (verso) Ìtàn àtowódówo[1], informa que o eléseese[2] Òrìsà Dídá Ayé é uma “história tradicional passada de geração para geração”. De acordo com a gramática iorubá, isto é um contrassenso, um poema jamais será uma história, e vice-versa, o que nos leva a um estudo um pouco mais profundo neste assunto.
Sobre o conceito iorubá de prosa e poesia, Olatunde Olatunji (in Afolayan, 1982:70) fornece uma breve definição:
“A distinção entre prosa e poesia iorubá não é absoluta, mas relativa. Poesia iorubá pode ser falada, entoada ou cantada, com ênfase na sua forma artística, paralelismo, jogo de palavras, repetição, contraponto tonal, combinação léxica, etc; possui itens de léxico arcaico, distorções ou divergências tonais e gramaticais, socialmente e tradicionalmente fixo em um assunto definido. A prosa iorubá, por outro lado, coloca ênfase sobre um assunto definido, o qual é individualmente escolhido conforme a linguagem comum de falar onde a inteligibilidade é primordial. Contudo, nada demais lembrar que a distinção não é absoluta. A linguagem e o ritmo da prosa, entretanto, formam a base de fundação do verso”
Na diáspora afrobrasileira a palavra ese não é usual, ficando restrita aos meios intelectuais, enquanto que ìtàn, ao contrário, é muito conhecida, mas adquiriu o conceito utilizado em português para palavra “história”; assim, arriscamos a afirmar que a palavra iorubá ìtàn está aculturada. A seguir, vamos dar alguns exemplos disso.
Pierre Verger (1972: 7, apud, Braga, 1988: 27) na transcrição abaixo, relata um encontro mensal dos babalaôs. Veja que Verger usa a palavra “história” quando está referindo-se aos versos de Ifá, percebendo-se claramente embutido o conceito europeu da palavra “história” sobre a palavra “verso” (ese). Talvez Verger nem percebeu isso.
“Este ensino constante se faz por meio da troca mútua do saber entre os babalaôs, ao longo de numerosas reuniões em que os adivinhos se encontram para discutir consultas que lhes são feitas sobre os mais diversos casos. Eles se reúnem também cada dezesseis dias em assembleias organizadas em todas as cidades, no dia do segredo (ojó awô), a cada quatro semanas, sendo a semana iorubá de quatro dias. Nessas ocasiões, após uma refeição comunal, os babalaôs relatam cantando algumas histórias de Ifá. Um dos sacerdotes conta, em solo, as estórias que são retomadas, frase a frase, pelos demais adivinhos. É nesse momento que eles exibem sua erudição. Aquele que inicia o canto tenta ofuscar seus companheiros com um relato novo e desconhecido para eles, pois se trata de uma grande glória assumir o papel de mestre e escuta-los repetir docilmente, verso por verso, uma nova história. É assim que os babalaôs presentes transmitem uns aos outros a sua ciência.”
Wande Abimbolá (1976: 43) referindo-se aos ese-ifá também utiliza o conceito inglês da palavra story, assim conceituando-os:
“Ese Ifá trata de todos os assuntos. Ele trata de historia, geografia, religião, musica e filosofia. Ese Ifá pode ser uma simples historia sobre um homem que está indo viajar e está querendo saber o que fazer para que a viajem tenha sucesso. Ele pode ser uma história altamente filosófica mostrando os méritos e deméritos da monogamia. Ele pode tratar da fundação de uma cidade. Não existe limite para os assuntos que ese Ifá pode tratar.” (Abimbola, 1976:32, apud, Abimbola, 1965:14). [o grifo é nosso]
“Ese Ifá tem uma estrutura original que o distingue de todas as outras formas de literatura oral iorubá. Uma vez que o ese Ifá é histórico em seu conteúdo, sua estrutura é também baseada sobre a sua natureza histórica.”
Juana Elbein, (1993: 149) em “Os Nagô e Morte” segue a mesma linha de pensamento de Verger e Abimbola, quando referindo-se a um extenso eléseese do Odù Osetura, assim o apresenta:
“Esta é a história de Òsetùwá tal qual é revelado pelo Odù Ifá. Diz a história como Èsù chegou a transportar todas as oferendas aos pés de Olódùmarè, fazendo aceita-las, e como Èsù se tornou Òjíse-ebo, o encarregado e transportador de oferendas, na terra e no òrun. Òsetùá é o oráculo que relata claramente o desenvolvimento desta história da maneira como segue. Diz ele:”
No mesmo livro, agora na página 171, Juana Elbein apresenta interessante registro etnográfico da tradição oral por ela recolhida em campo de pesquisa na Nigéria, o qual mostra a palavra ìtàn no primeiro verso do eléseese na própria versão original iorubá, ou seja, a língua nativa já utiliza
“história” como sinônimo de “verso”:
Odù Osetura
1. Itàan Èsù!2. Níbi tí Èsù gbé gba àgbà
[...]
Assim, do ponto de vista técnico, embora aculturada, a forma que utilizamos se faz correta, uma vez que o uso que fazemos da palavra ìtàn dentro de um ese procura atender aos conceitos da diáspora dos falantes de língua portuguesa, porém, mantendo tanto quando possível a forma iorubá tradicional na sua construção poética. Desta forma, podemos afirmar que se trata de um “poema de versos livres”.
[1] [1] O poema Òrìsà Dídá Ayé (Orixá criou o mundo) é composto por 396 ese (versos), sendo este o verso nº 1.
[2] [2] Uma coletanea de versos, um poema
Por Luiz L. Marins