23 CABINDAS HISTORIA - CRENÇAS - USOS E COSTUMES: TOMO XXIII

MANIFESTAÇÕES DE ARTE E DE VALORES ESPIRITUAIS ATRAVÉS DA

SIMBOLOGIA - DANÇA - ESTATUÁRIA E PINTURA - CONTOS E ALEGORIAS


A - SIMBOLOGIA

A maior riqueza espiritual, para nós, que se encontrava entre os Bakongo e Bauoio e, um pouco menos, entre os Balinge e Basundi era um simbolismo e um género de escritura ideográfica que usavam em tempos passados, não muito longínquos.

E dizemos que se encontrava porque, infelizmente, vai em vias de extinção.

Por imagens, por desenhos, por representação de animais e de objectos, pelo entrelaçado de fibras de diferentes cores nas esteiras, por gravações em peças de cerâmica ou em cabaças de vinho de palma, tudo figuras e desenhos simbólicos a que estavam ligados velhos provérbios e conceitos, «escreviam», «falavam», «diziam» o que queriam e até, em certos túmulos, indicavam por esses símbolos traços biográficos do defunto.

Sem neste trabalho poder dispensar-me de dar uma pequena amostra dessa bela (e diríamos única, no género) escritura ideográfica, pela qual estes povos mostram uma argúcia, poder de síntese, intuição e espírito de observação e de psicologia surpreendentes, temos de remeter o leitor para o nosso trabalho «Sabedoria Cabinda - Símbolos e Provérbios» dedicado exclusivamente à interpretação e explicação desses símbolos.

Vamos buscar para aqui mais um desenho de um, túmulo que aparece na mui curiosa e valiosa obra do Ex.mo Senhor Professor Doutor Silva Cunha, presentemente Mui digno Ministro do Ultramar, obra intitulada «Aspectos dos Movimentos Associativos da África Negra» (Ministério do Ultramar - 1958) e para o qual conseguimos a interpretação dos símbolos. Mas note-se que a interpretação deste como dos outros foi procurada e conseguida por nós...



Inscrição - lci Dl Japascl dECER1951.
Símbolos - Uma palmeira e dois homens.
Pergunta, o que está ao centro, ao que está debaixo da palmeira:

- Nani ouo ke va sina liba?
- Minu.
- Nani ngeie?
- Minu mpuili. Libá liámi.
- Kokue ngeie? lenda kuaku. Libuku libika
bakulu bámi.

- Quem está debaixo da palmeira?
- Eu.
- E tu quem és?
- Sou eu, o dono. A palmeira é minha.
- Ai é tua? Vai-te embora. Esta é a terra que me deixaram os meus antepassados.

A Lição

O seu a seu dono. Não pretender usurpar o que é dos outros, Saibamos, sim, cuidar bem do que nos legaram os nossos velhos para que não apareçam cobiçosos a perguntar (se é que não tentam tomar conta) do que é nosso.

Deste símbolo, colocado em sua sepultura, se depreende que o defunto teve luta com outrem para poder conservar o que lhe deixaram os seus velhos. Os seus descendentes ao lembrarem em seu «epitáfio» o que se passou, querem indicar que não estão dispostos a perder o que lhes ficou de herança.

Em duas campas em Cabinda, em uma delas no cimo de uma cruz de madeira e, na outra, directamente sobre a terra e ao meio da sepultura, encontramos a figura de um peixe feito em madeira. Um, pintado de branco; o outro, de amarelo. Mas a cor não interessa.

A esse peixe, espalmado, quase tão largo como comprido, lhe chamam o Mbuli Vanga (Mpuli Vanga?). Parece-nos aparentado com o rodovalho ou solha. É tido por muito prolifero.

Vanga é o verbo Kuvanga - fazer, trabalhar. Portanto, é o Mbuli (Mpuli) que faz, que trabalha, Mas não chega. Para a explicação do símbolo aparecem-nos com o trocadilho e pergunta:


Mbuli vanga:
Uivanga naveka?
Ve. Nzambi uivanga iau.

Mbuli vanga:
Fez-se a si mesmo?
Não. Foi Deus quem o fez.

(Se fosse ele mesmo a fazer-se, a dar-se a vida a si mesmo, morreria? Certamente que não.)



Fig. P 69 - O Chefe e Nkotokuanda, na aldeia Fortaleza-N'Goyo, reunem-se para uma questao de casamento.


E, então, que dizer, que lição tirar, que epitáfio nos revela o Mbuli Vanga?
Resume-se no seguinte:

«Aqui jaz quem muito viveu, muito trabalhou e que teve muitos filhos. Mas não era senhor de sua vida, senhor da morte.

Também para ele chegou o seu fim, mas depois de muito viver e de muito trabalham.

Uma dessas campas, que vimos (e fotografamos) com o Mbuli Vanga sobre a terra da sepultura, tem hoje um belo mausoléu.

E nele, para justificar a presença anterior do Mbuli Vanga - que muito faz, muito produz e muito vive, mesmo que tenha que vir a morrer também -, pode ler-se perfeitamente:


BARTOLOMEU DE
SOUZA - PUNA
MOREU - COM - IDADE
84 ANOS 8-4-69

Nos 84 anos se encontra o direito ao Mbuli Vanga. É que em 84 anos, por que muito se viveu, muito se produziu e, certamente, muita descendência se deixou. Em campas de jovens ou de pessoas que não atingiram longa vida e numerosa descendência não se colocará o Mbuli Vanga.

Apresentamos um têsto de panela. Era através destes têstos que a esposa muitas vezes dizia ao marido (e vice-versa) o que dele pensava, o que pretendia ou de que o acusava.

Neste encontramos representados um pequeno mutete (pequeno cesto de viagem), um ngongolo nombe (o milipede negro) e um cachimbo.



1 - Makuela m'intete-tete:
Podi síkama va nzó nuni ko.
A mulher casada (quando põe à cabeça) o pequeno cesto Ntete: Não pode ficar em casa do marido.

E porquê?

2 - Ngongolo nombe ka futamena:

Liambu.

O milipede negro que se enroscou:
Questão (motivo houve para isso).

- Há que pensar e medir bem as consequências.

3 - Ubaka itimba kimona: Kuloza nkódi ko.

Quem arranja um cachimbo novo:
Não deita fora o velho (que lhe pode vir a ser preciso).

Depreende-se pois que a mulher, com o colocar tal testo no cimo da panela da comida do marido, lhe quer dizer mui simplesmente:

«Torno o meu cestinho de viagem e vou-me. Boa razão tenho para isso, para me sentir e «enroscar» como o ngongolo nombe.

Lá por que arranjaste uma nova mulher (que nem sempre é uma mulher nova), agora me despresas e abandonas. Mas sentirás a minha falta por que ainda é por um cachimbo velho que mais agradáveis fumaças se tiram, como em panela velha mais gostosa comida se faz»!...

Uma esteira.

Dá-se-lhe o nome de Maviongo mankandi - o desenho do conocote.
(O coconote está representado pelos ponto negros ao centro de cada losango).



Ubá nkandi vuila:
Ka mpapa nkandi libólila mu maiala.

Sê como o coconote inteiro (íntegro):
Que muitos coconotes (por não estarem inteiros) apodrecem na lixeira.

O valor da jovem está na sua virgindade, como o do coconote está na sua integridade. Uma e outro têm sempre valor e procura desde que estejam intactos.

Cremos bem que as amostras que damos desta magnífica espécie de escritura ideográfica, a juntar às interpretações já feitas no decorrer deste trabalho de algumas bandeiras de Chefes, são bem elucidativas da riqueza e beleza que contêm.


B - DANÇA E BATUQUE

«Au clair de la lune toute l'Afrique danse» - em dias de luar toda a África dança - escreve Mons. Le Roy em La religion des Primitifs.



É que na África, fora dos grandes aglomerados, e ainda assim só nos tempos mais recentes, a melhor luz durante a noite é a da lua cheia. Aproveitam pois essas belas noites para se divertirem dançando, ao mesmo tempo que se presta, dessa forma, um certo culto à Ngonda - Lua. E a dança, conforme muito bem diz Kunz Dittmer em sua Etnologia General (Fondo de Cultura Economica, México - Buenos Aires) «oferece uma extraordinária possibilidade de descarga por via motora das tensões psíquicas e da expressão do sentimento de desagrado ou agrado mediante a actividade do instrumento primário que é o corpo». Assim a dança satisfaz desde os seus começos uma necessidade individual e social e é um dos meios mais populares de distensão dos nervos. É difícil imaginar, afirma ainda Dittmer, uma sociedade sem danças.
E, se imaginarmos ainda esta sociedade sem outra distracção ou divertimento, como se poderá obstar a que dance? O dançar torna-se então uma necessidade quase premente, uma medicina imprescindível para descarga emotiva. É por isso que dançam, dançam, dançam horas e horas a fio, como que a aproveitar a lua que se desfaz em esplendor, para não perderem nenhum dos momentos que restam dessa espécie de embriaguês, até caírem extenuados.

E porque a dança é ainda um dos meios mais fáceis e mais perfeitos de expressão, vamos encontrá-la sempre ligada aos actos magico-religiosos.

Por isso a vemos nos actos de culto e rituais, a saber:

Na intronização do Nkisi-Nsi e suas festas; nas apresentações dos Zindunga, zeladores do Nkisi-Nsi; nas festas da iniciação (circuncisão) dos rapazes e na das raparigas, Nzó-lkumbi e Nzó-Kualama; no nascimento de gémeos, tidos por filhos do Nkisi-Nsi; nos funerais (outrora) dos grandes Chefes, agora transferidas para o Mpolo, e que são danças para afastar a tristeza; mesmo em danças para castigos de actos contrários às Leis morais de Lusunzi e do Nkisi-Nsi, tais como a Mbumba-Mbitika, já descrita, e a Nkilika Nkuti, imposta aos pais da criança concebida por acto conjugal, mesmo legítimo, mas praticado antes da manifestação da volta do primeiro mênstruo após a aleitação do filho anterior.

A Nkilika Nkuti era dançada nas mesmas condições que a Mbumba Mbítika.

Ligada ainda ao culto, havia a dança Sanga, género de dança guerreira, praticada no enterro dos nobres e grandes senhores e que era simulacro de luta contra os Bandoki, comedores de almas, maus espíritos. A Sanga apenas pode aparecer agora, uma vez por outra, na festa do Mpolo,

O movimento de todas estas danças era marcado pelo ritmo do toque dos tambores.

A letra, musicada em rectoctono, acompanhará pura e simplesmente esse ritmo.

Em festas dos grandes senhores e nas danças respectivas aparecem:

- O Ndungu Iilu, o grande tambor do chefe, que se toca colocado no sentido horizontal muitas vezes seguro entre os joelhos do tocador. O Ndungu Iilu chega a ter de comprimento de dois a três metros.



Fig. C 55 - O tocador de Ngundu-lilu mostra os simbolos gravados no tambor: Tata-Mikono e Nkanda likoko

- Outrora também os tambores Bikula, tambores de 80 centímetros a um metro, tocados ao alto, de pé, e que só existiam nas casas dos grandes chefes.

- Os Zimpungi, pontas de elefante, nunca em número inferior a três (nuni, nkazi e muana - marido, mulher e filho).

Para certas festas em honra de feitiços, v. g. do Lemba, são usados tambores próprios, por exemplo o Ngoma.

Para as danças de puro divertimento, posto que se possa pedir e usar o grande Ndungu Iilu, aparecem antes os tambores comuns Zindundungu, tambores mais pequenitos.
O ritmo, sempre marcado pelos tambores, chega a ser acompanhado por:

a) - Uma espécie de «reco-reco», feito de bambu trabalhado em dente de serra, que se toca fazendo passar pelos dentes, ritmicamente, um pau duro e seco.



b) - Pelo Ntenfo, um aerófono feito de pau furado a ferro em brasa.




Fig. P 71 - Tocador de Ntenfo

c) - Fazendo dos grossos pedúnculos, que são furados, das folhas de mamoeiro um género de trombeta.





Manhanga

d) - Não raro se lhes junta idiófonos de dedilhar, tais como a Manhanga, com uma espécie de teclas em banza (nervura seca do ramo de palmeira) ou de lâminas de ferro ou de arame batido.

E o cordófono Lukengi (ou Nsenge), com cordas de ráfia ou de qualquer liana fina e resistente.




Lukengi


A Manhanga, para maior sonorização, é muitas vezes tocada dentro de panelas, latas ou até de cabaças a isso adaptadas.

Na Manhanga, em pequena caixa de ressonância trabalhada numa só peça, escavada ou queimada a ferro em brasa tapando-se, depois, com madeira da mesma qualidade, o local, a boca que ficou aberta para se fazer essa caixa, são bem fixadas no tampo superior umas sete ou mais teclas ou palhetas, cada uma com seu som diferente mas em acorde. Palhetas em arame batido ou banza.

Segura pelas duas mãos, as palhetas da Manhanga são dedilhadas pelos dois polegares.

O Lukengi ou Nsenge, já de caixa de ressonância bastante maior, comumente também de uma só peça, tem como braços 4, 5 ou mais varas resistentes e que fazem de mola esticadora das cordas. Estas são fixas ao tampo anterior do instrumento e abaixo da terça parte inferior do mesmo, indo prender-se cada uma a uma das varas esticadoras que funcionam como cravelhas.




As varas esticadoras são seguras às costas do instrumento, quase sempre por lianas e em reentrâncias para isso deixadas.

Seguro, o Lukengi com a mão esquerda e com o tampo posterior recostado sobre o braço, as cordas afinadas em tons acordes são feitas vibrar pelo vaivém dos dedos da mão direita.

Um dos mais rudes Lukengi feito da aplicação de uma caixa ou de uma pequena caixa construída de tábuas leves e finas.

e) - De ramos de árvore em forquilha, sendo as extremidades do V fixas por uma vareta, fazem um outro género de cordófono.



As cordas, de 6 a 8, são retesadas e distribuídas a espaços mais ou menos regulares, e começando pela parte mais larga do V, pelos braços da forquilha.

É dos cordófonos mais fáceis de confeccionar e também, por isso, dos mais infantis.

f) - Junta-se-lhe o Zic... Zic... Zic... de pedrinhas ou grãos mais comummente de coconote, dentro de latas ou de pequenas cabaças, sacudidas segundo o movimento marcado pelos tambores.

g) - O tantã - Nkonko - raramente, pode vir misturar o seu som ao dos tambores.



Fig. P 73 - O Tanta da Missao Cat. do Lukula. Ouvia-se a 14 kilometros.

Feito do tronco cavado de uma árvore, deixando uma fenda longitudinal, com dois lábios e cada um com o seu som - um grave e o outro agudo - é o tantã tocado por duas espécies de baquetas. São estas feitas de madeira mole e leve, para não ferirem os lábios do tantã, e não raro do grosso pé do cacho de dendém, a parte que fica depois de desgranado, que vem a dar ao toque do tantã um som mais cavo e mais suave, menos duro.


h) - E como se tudo isto não fosse suficiente, quando se chega ao auge da animação aparecem gaitas de todos os lados e de toda a espécie e inventam-se mil maneiras para animar os dançadores.

O forte da dança é deixado aos homens válidos e rapazes robustos. Ao centro, em saltos virís e ritmados, dançam esses homens.

Em círculo os rodeiam as mulheres, as crianças e os mais velhos. Batem palmas, cantam ou gritam. Com alguns passos de dança, as mulheres mais válidas e as moças parecem arremadar o dançar dos homens.

Por vezes, ao som e ritmo da mesma batucada, mas em grupos separados, dançam os homens de um lado e as mulheres de outro.

A dança, posto que muitas vezes um tanto lasciva e pornográfica, sobretudo por ocasião das festas da Nzo Kumbi e Nzo Kualama, em tempos passados nunca era aos pares de sexo diferente.


P 72 - Tocador de Ngongie.

Mas hoje, salvo as rituais e ligadas a algum culto, sentem a influência europeia e são dançadas aos pares.

Das deste género conheceu-se, como das primeiras, a chamada Mucháchá. Teria sido influenciada pelo Tchá-Tchá-Tchá?

A Maieia, executada principalmente por ocasião das festas da Nzo Kualama, distingue-se pelo modo de vestir.

As mulheres dançam com saias de muita roda e compridas, até aos pós, feitas em pano de tipo chita ou estampado; os homens, envolvidos em panos do mesmo género, à cinta, com as pontas caídas e arrastando pelo chão. Não têm eles a preocupação de, à frente, cerrarem o pano totalmente, antes pelo contrário, deixando ver o calção ou calça que vestem e, não raro, os movimentos e gestos menos decorosos que fazem.

Ouvimos falar na dança Mbembo ( = palavra, voz) dada em honra da donzela que era encontrada virgem no matrimónio. O marido, na manhã a seguir à noite de núpcias, anunciava a virgindade de sua esposa. Havia depois, à noite, essa dança Mbembo. A letra dos cantos, entoados por uma mulher da aldeia, era em louvor da jovem esposa e de seus pais que tão bem a haviam educado e resguardado.

Os mais pequenos e mais pequenas - e, por vezes, adolescentes e jovens - não deixando de arremedar as danças dos mais velhos e entrando perfeitamente no ritmo, desde criancinhas e com uma facilidade que diríamos inata, guardam para eles a chamada dança SUSA (ou SUNSA). Antes lhe chamaríamos jogo do que dança. Dois de cada vez, voltados um para o outro, em movimentos bem ritmados, marcados pelo bater das palmas das mãos, pós movidos muito rentes ao solo, é tido por mais expedito e ganha o que mais rapidamente levantar um dos pós, ficando a coxa quase em ângulo recto com o corpo.

Uma simples fogueira é suficiente para iluminar o local para a Susa. As noites frescas do tempo do cacimbo são as mais escolhidas para esta dança-jogo.

Os Marengues de hoje (termo para designar indiferentemente as salas de baile - algumas bem espaçosas - que existem na cidade, vilas e em quase todas as povoações, ou as danças lá executadas) atraem, sábados à tarde e domingos, inúmeros frequentadores, mesmo europeus, que se entregam a danças de toda a espécie.

O custo de alguns desses salões e seu apetrechamento e mobiliário (200, 300 e até 400 contos!) pode levar-nos perfeitamente a imaginar a afluência das pessoas.

Com luz eléctrica das centrais ou de motores privativos, à luz dos Petromax ou dos candeeiros Aladin (estes mais para o interior), animados por pequenos conjuntos - alguns já muitíssimo bons ou por discos de música africana ou até europeia, que os amplificadores de som e altifalantes espalham pelos quatro ventos, divertem-se, dançando e bebendo, até altas horas da madrugada.

Mas o luar, nostálgico e sonhador, a iluminar dançadores e tocadores de batuque, que se desfazem em gotas de suor que mais parecem pérolas negras, continuará a ser a luz e a música das festas rituais e das consagrações aos manes e ao Nkisi-Nsi, o espírito benfazejo da terra!

Os tambores costumam ser feitos de Sanga-Sanga (Ricinodendron africanum, M. A.) ou, o mais comum, de Nsenga (Musanga Smithii).

São madeiras leves e moles e, por isso, fáceis de trabalhar.

Dificilmente ganham fendas.

Os troncos são perfurados com um género de formões compridos feitos em ferro (v. g. verguinha de 1/2 ou uma polegada) batidos e afiados em uma das pontas.

A pele dos tampos é quase sempre de cabrito. E é daí que se tira o adágio:

Nkombo tobuela ngoma:
Na naveka uibaka nkanda bilondila.

O cabrito furou o tambor ngoma:
É nele mesmo que arranja a pele para o consertar.

A caixa de ressonância da Manhanga e do Lukengi é de Nsenga ou de Songáti (Alstonia congensis Engl.).

Para o Tantã - Nkonko - o mais usado é o tronco da Kambala (Moreira - Chlorophora excelsa (Welw.) Benth & Hooc).


C - ARTE - ESTATUÁRIA E PINTURA

Os Bakongo e Bauoio, sem grande preocupação de perfeição de forma, ligavam antes aos seus trabalhos de arte certo simbolismo ou a representação de pessoas.

Ainda hoje. aparecem alguns desses trabalhos a que, por se apresentarem com aspecto mais rudimentar, se lhes dá menos valor. E é um erro pois têm-no e muito maior pelo que significam, pelo simbolismo que encerram, pelo tal género de escritura ideográfica que a esses trabalhos está ligada. Assim:

1 - Tartaruga mais ou menos bem executada, não só lembra o animal que representa mas significará que, assim com ela ao menor perigo se abriga na sua carcaça, a mulher casada se deve apoiar e defender em seu marido.

2 - Na representação da luta entre dois pombos pelo mesmo grão de amendoim, não se pode olhar só a perfeição da forma mas ter-se-á que «ler» o seguinte: O grão de amendoim não pode ser dos dois, um ganha e outro perde, Também uma rapariga não pode casar com dois rapazes ao mesmo tempo. Vai para o mais expedito, para o mais forte (em bens e qualidades),

A representação de pessoas encontrámo-la em alguns túmulos dos tidos por grandes senhores. E, vamos lá, nem sempre está alheia a parecença entre o busto e o que havia sido o defunto.

Fora disso, quer em pintura ou em escultura, não nos foi dado encontrar qualquer retrato ou busto.

Nas paredes exteriores das casas de adobo rebocado, a pintura de vasos e flores em cores muito vivas (predominando o verde, vermelho e amarelo, e com rodapé e faixas nos cunhais, junto ao telhado, nas ombreiras e padieiras das portas e janelas) alegra as aldeias por estas casas se encontrarem disseminadas por entre as de material comum: só de palha e luandos. Mesmo nestas, por vezes, se encontram os bordões que seguram os luandos colocados em boa simetria, formando losangos ou outras figuras geométricas, que são pintadas em cores garridas.



Fig. P 76 - Uma bela e airosa aldeia no interior de Cabinda, Kinzazi.



P 77 - Aldeia a sombra dos coqueiros.



C 57 - Parte da aldeia de N'Goyo, sede do antigo Reino.



C 58 - A limpeza e simplicidade das casas contrasta com a pujanca dos palmares.



C 59 - As periferias da cidade de Cabinda.

Nos últimos tempos tem-se desenvolvido bastante uma certa «escola» de pintura e estatuária. A pintura, e sobretudo a escultura, foi muito influenciada pela escola que houve na Missão da Muanda - República do Zaire - a uns 50 quilómetros de Cabinda e junto à foz do Zaire, à frente da qual e como seu fundador esteve um missionário dos Scheut (P. Nico Vandenhoudt).

A maioria destes trabalhos de estatuária e de outras obras em madeira é executada por alguns artistas da colónia de Basolongo (gente de Santo António do Zaire) que reside em Cabinda.

É tido por ser o melhor artista Cabinda o José Kengele, da aldeia do Kinzázi.
Fig. P 74 - O Jose Kengele, no Kinzazi, comeca a modelar um Cristo.


P75 - O Casimiro, trabalha numa imagem da Virgem.

Os motivos da pintura, em quadro a óleo sobre a «tela» de pano cru ou de sacos de açúcar, ou aquarela, sobre cartolina branca, amarela ou preta, raro foge da paisagem de certos tipos de aldeias ou rios (com pontes de lianas e canoas presas às margens), de um ou outro quadro com pinturas de caçadores e dançadores estilizados,



Na escultura atiram-se mais à reprodução de certas imagens religiosas (procurando também o género estilizado) e figuras de antílopes. Vão abandonando os trabalhos em pau preto, a que davam forma de mulheres e homens entregues a trabalhos domésticos ou do campo. E é pena.


A muita procura de pinturas, imagens e bonecos (a que indiferentemente se dá o nome de pintura ou escultura de objectos de arte...) feita por parte dos europeus, que vivem ou passam por Cabinda, leva a um trabalho apressado, menos cuidado, menos perfeito.

É por isso que os artistas muitas vezes, para facilidade de confecção, aproveitam madeiras de qualidade média ou inferior e não suficientemente seca. Por este motivo, passados tempos, as peças aparecem com fendas.

Está-se já numa estandardização que facilitando a confecção de dois ou três motivos em pintura ou escultura - atrofia a iniciativa e a verdadeira criação de objectos de arte.

Mas ainda se estava bem a tempo da criação de uma Escola de Pintura e Escultura em Cabinda, aproveitando para isso os rapazes artistas das várias «barracas de bonecos» que, na verdade e em bom número, são bastante mais do que simples habilidosos. Seria ainda altura magnífica para se deitar mão dessa riqueza sem igual, para se não deixar morrer por completo, e que é o «simbolismo e escritura ideográfica» dos Cabindas.


D - CONTOS E ALEGORIAS

Nas noites escuras - e há-as de breu - e mais nas do tempo fresco do cacimbo, enquanto se aquecem à roda das fogueiras, os mais velhos contam histórias dos velhos tempos, propõem uma ou outra adivinha e narram contos e alegorias.

É destas que vamos deixar alguns exemplos:

1 - O pedido do cão e de outros animais

Partiram vários animais em passeio. Tudo corria muito bem quando, de repente, cai um pau no meio do caminho. Ficando do lado contrário àquele em que seguiam, o cágado pediu aos outros:

- Oh! meus amigos, tendes que ter paciência. Sabeis que não posso saltar. Esperai, por favor, até que o pau apodreça e eu possa acompanhar-vos. Esperaram.

Depois o Sibizi (um roedor) pediu para que ficassem até ao tempo das colheitas. É que gosta muito de amendoim, de milho e de mandioca. E os outros animais ainda atenderam a este pedido do Sibizi.

Mas o cão também quis pedir um favor: que tivessem a bondade de esperar até que o focinho lhe ficasse seco. Mas era pedir muito, pedir o impossível. Não acederam. Seguiram caminho deixando-o. E é por isso, dizem, por terem deixado o cão sem que lhe secasse o focinho, que ele agora corre atrás de todos os animais.

Lição - A paciência pode chegar para coisas difíceis, mesmo muito morosas. Mas, para o impossível, não há paciência que baste.

2 - O leopardo e a gazela

Encontraram-se na floresta. Perguntaram-se qual deles ficaria o Rei. Fiado em suas unhas e manha, o leopardo afiançava que seria ele. A gazela, ciente de sua velocidade e esperteza, chamava para si o título. Resolveram, então, dirimir a questão em reunião de animais.

A reunião seria em casa do leopardo. E, para ver se conseguia o que pretendia, este faz-se doente. Os animais entravam para o ver e cumprimentar. Mas a gazela não caiu nisso. Ficou à porta. Bem lhe diziam os outros animais para que entrasse mas sempre a isso se negou.

O leopardo havia nomeado seu lugar tenente ao Nzuzi - felino mais pequeno - que veio cá fora ver se convencia a gazela a entrar. Mas ela continuou a negar-se e ficou à porta a espreitar.

O Nkumbi - espécie de doninha - também desaconselhava a gazela a que entrasse e disse-lhe que esperasse enquanto ia ver se, de verdade, o leopardo estava doente ou não.

O Nkumbi furou por baixo da casa até junto do leopardo e tocando-lhe, mesmo ao de leve, fê-lo estremecer mostrando bem à gazela que a doença não passava de fingida...

O próprio leopardo («senhor» Ngó), notando que nada conseguia e que nenhum animal convencia a gazela a entrar, deu em correr atrás dela que conseguiu escapar-se. E o Nzuzi fechou a porta da casa do leopardo com os animais que lá estavam - muito menos espertos do que a gazela e doninha - para serem comidos depois.

Tempos passados, a gazela, por sua vez, também deu parte de doente. O próprio leopardo a foi visitar. Junto da casa da gazela notou ele certas armadilhas - básula - próprias para apanhar peixe.

- Então, Ó gazela, para que tens aqui estas armadilhas?
- Para apanhar peixe, está visto, respondeu a gazela!

- Como queres apanhar peixe aqui, longe da água?
- É assim mesmo, replicou a gazela. Os próprios peixes se vêm cá meter...

O leopardo partiu animado a fazer a mesma coisa. Dispôs as armadilhas da mesma forma como vira em casa da gazela. Mas nada de peixes!...

Voltou a falar com a gazela e disse-lhe que nada apanhara.

- Ora, Deus nos valha, disse a gazela. Esqueci-me de dizer tudo quanto se deve fazer. Desculpa lá a distracção, leopardo! É que, para se apanhar o peixe e fazer com que ele se venha aqui meter nas básula, necessário se torna construir um mutete, suficientemente grande e forte, onde a gente se possa prender bem. Deita-se à água e os peixes vêm, depois, cá meter-se!...

O leopardo regressou no dia seguinte com o mutete e vinha com forte vontade de ir pescar e apanhar peixe. A gazela, até com a ajuda do nzuzi, amarrou ao mutete o leopardo e mais fortemente do que este desejaria. Deitaram-no à água. E aconteceu o que a gazela queria: o leopardo morreu afogado...

Por isso, nunca mais se viu uma gazela junto de um leopardo e ela foge sempre para bem longe logo que o seu olfacto, bem apurado, lhe denuncia a presença próxima do leopardo.

Lição - Não é raro a esperteza dos fracos e pequenos deixar mal e vencer as arrogâncias e presunções dos grandes e fortes. Mas, depois, têm de andar bem atentos para não caírem nas garras dos «grandes senhores» que raro esquecem e perdoam a humilhação sofrida.

3 - Três homens na Kilala

Regressam, à tardinha, ao alpendre (kilala) que têm na floresta para recolherem o vinho de palma o acamaradarem. Um deles tratou de assar uma batata doce. Cada um tinha uma namorada que, precisamente nessa tarde, também resolveram vir beber um golo com eles.

Quando sentiram que as namoradas chegavam, o da batata doce tirou-a do fogo e tratou de a esconder cobrindo-a com os próprios pés. Começou a sentir-se queimado, mas não quis dar parte de fraco e, muito menos, ceder a batata!

Consequência: escaldou-se a ponto de largar a pele da planta dos pés.

Lição - As tuas coisas, se não queres que te as invejem ou até que te venham a trazer males, trata de as esconder a tempo dos olhares dos outros, pô-las ao longe e ao largo, até fora dos olhares dos teus, da tua família, aliás acabarás por ficar mal (escaldar-te-ás) pois eles não te perdoarão o não lhes emprestares ou, até, dares as coisas. O que tens à vista terá que ser repartido pelos outros.

4 - Uma história de Nhimi

- Oh! Nhimi, tu nunca foste ao N'Goyo, a Simulambuco?

Não, Nhimi nunca tinha ido ao Simulambuco.

Preferiu Nhimi arranjar um trocadilho de palavras e quis perceber que lhe perguntavam se nunca tinha estado em N'Goyo nsi a mbuku, expressão que quer dizer «meter-se debaixo da cama».

E ele também nunca tinha dormido debaixo da cama.

Está bem, disse Nhimi, também lá vou ter. E, enquanto os outros seguiram para Simulambuco de Ngoyo, ele escondeu-se debaixo da cama - N'Goyo nsi a mbuku.

quando a pequenada da aldeia começou a gritar que as pessoas estavam a chegar de Simulambuco, o Nhimi saiu de debaixo da cama.

Lição - Para fugir à confusão e inconvenientes que muitas vezes há na companhia de outros, o melhor é fingir que se lhes faz a vontade e proceder-se como nos convém. Melhor é andar só, mesmo que se tenha alguém de se esconder, do que mal acompanhado.

5 - Segunda história de Nhimi

Morreu o pai de Nhimi. Ficou a pobre viuva. O Nhimi pouco mais fazia do que tratar das suas coisas e deixava sem ajuda e sem amparo a pobre mãe viuva, Nada lhe arranjava e nem mesmo lhe cortava um cacho de dendém. Censuravam-no por tanta preguiça e, sobretudo, pelo abandono em que deixava a mãe. Nem sequer, diziam, «lhe deitas» um cacho de dendém para fazer a muamba!...

Um dia o Nhimi sempre se resolveu a «deitar» à mãe um cacho de dendém. Chama-a para que vá com ele ao palmar, que lhe cortará dendém, que lhe «deitará» dendém para ela.

A pobre velha seguiu seu filho Nhimi. Nhimi sobe à palmeira.

Tem já o cacho quase cortado quando chama a mãe mesmo para debaixo dele e do cacho. E o cacho, então, é «deitado» sobre a pobre mãe, que morre apanhando com o cacho na cabeça.

E agora todos o censuram e o condenam: mataste a tua mãe!

- Não era, responde ele, o que vás queríeis e me pedíeis? «Nhimi, nem um cacho de dendém «deitas» à tua mãe! Fiz o que vós me pedistes.

Lição - Há quem use de medidas drásticas para evitar que andem sempre sobre ele. O Nhimi preferiu matar a mãe a ouvir dizer que não fazia caso dela.

O picar e insistir sem tréguas com os outros ocasiona, por vezes, verdadeiras desgraças.

6 - A esperteza do Nhimi

Havia o Nhimi tomado a resolução de ser enterrado com a mulher (ou vice-versa) quando um deles morresse. Seriam, nessa altura, enterrados com todos os seus haveres e pertences.

E morreu primeiro a mulher.

O Nhimi tratou logo de juntar tudo quanto pôde, procurando nada esquecer para ter muito que enterrar. Faz-se a cova. Enterra-se, mesmo no fundo, o caixão com a mulher. E Nhimi vai deitando as coisas sobre o caixão. Seria o último a ser enterrado, por cima de tudo.

Conseguiu tanta tralha que encheu a cova quase até ao cimo.

- Não, Nhimi, não pode ser, dizem os outros. Saí. Não há fundura suficiente. Temos de fazer cova mais funda.

Tiram-se todas as coisas e o caixão da mulher. Afunda-se a cova. E agora são os outros quem tudo deita para dentro. Nhimi mostra-se desinteressado.

- Anda, Nhimi, agora és tu. Há lugar suficiente. Podes entrar na cova.

- Não fostes vós quem me mandou sair? E quereis agora que eu vá para lá! Não, não vou. Tapai assim a cova.

Lição - Na primeira, quem quer cai!... Mas na segunda!...

7 - O egoísmo castigado

O caçador havia apanhado um sibizi. É animal roedor e de muito boa carne. Tratou de o esfolar e de lhe dar todas as voltas precisas para o assar e comer.

Estava quase para o meter nas brasas, quando sente que a sua namorada se aproxima com outras companheiras, Como os namorados não podem comer juntos, atirou o sibizi para o meio do capim que lhe ficava ao lado. Mas a amiga levava um cão. E os cães têm faro especial para tudo o que é caça. O cão fareja a carne e trás o sibizi à mão de sua dona. Não cabem em si de contentes as raparigas por terem conseguido carne fresca. E o «nosso» caçador não tem coragem, nem a pode ter, para contar o que fizera.

Lição - Ao avarento e egoísta para nada lhe serve o que tem.

Chega a beneficiar mais os outros do que a si mesmo. Melhor é ser generoso, que a generosidade tem sempre paga.

8 - A vaidade e exibicionismo castigados

Três rapazes na kilala. Aparecem depois umas meninas para passarem um pouco de tempo e beberem um golito de malavo fresco.

Um dos rapazes sobe à palmeira para colocar uma cabaça para recolha do vinho. Para isso é sempre preciso cortar a muengi, a flor da palmeira onde, rente ao tronco, se aplica a cabaça.

A muengi é pesada. É imprudência, estando alguém cá em baixo, tentar apará-la à mão. Mas estão ali umas :meninas e um deles deseja mostrar-se, fazer-se forte.

- Deita a muengi que eu seguro-a.
- Não, que te arriscas a partir o braço.
Mas o outro teimou e o de cima cedeu. E aconteceu o que era de prever. O arrogante e basófia estala o braço. Mas não «dá o braço a torcem e nem se queixa. Contudo, não deixou de se sentir castigado por sua basófia e imprudência.

Lição - Castigo de vaidade e de exibicionismos. Assim acontece muitas vezes aos que olham demasiadamente para as mulheres e se querem fazer muito fortes diante delas.
Tendo-me sido contada esta alegoria em 1970, quando em Cabinda já se encontra o «inferno» das motorizadas, a aplicavam aos muitos desastres que têm havido por se quererem mostrar grandes corredores diante das pequenas!...

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