16 CABINDAS HISTORIA - CRENÇAS - USOS E COSTUMES: TOMO XVI

CASAMENTO

Se exceptuarmos aquilo que é próprio e exigido para um casamento católico - e note-se que a maioria da população do País de Cabinda é católica - tudo o mais é comum ao casamento natural, casamento clánico.

Não tive conhecimento de qualquer ritual ou formulário próprio do casamento natural.
Já depois de ter sabido que há quem proclame certa formula de consentimento entre os noivos, tendo procurado informar-me, mui seriamente, nas minhas últimas idas a Cabinda, a este respeito, sempre me foi dito nada haver ou ter havido nesse sentido.

Resolve-se, sim, entregar a rapariga ao noivo em tal ou tal dia, que será de festa, de comes e bebes, e o casamento julga-se contraído pelo facto de a rapariga ir para o noivo com o consentimento da família.

O noivo deveria ter dado o Nlandulu kikumbi, a última parte do alambamento para que lhe fossem buscar a noiva à Nzo kualama e lha levassem para casa,

Há quem admita, e inclinámo-nos para isso também, que o casamento está perfeitamente celebrado só depois da entrega total do alambamento estipulado, mesmo que, com o consentimento da família, tenha havido até casamento religioso e a rapariga haja passado a ter vida comum com o noivo.
E daqui se poderão começar a tirar muitas ilações e lições.

Vamos, pois, a particularidades e cerimoniais, mais de uns que de outros clãs. Muitos dos usos e costumes que vamos descrever estão em decadência especialmente ; nos meios mais próximos dos europeus e, de um modo muito especial, na cidade de Cabinda.

Depois dos primeiros proclamas na Igreja - ou depois de a noiva entrar na «Casa da Tinta» - o noivo não ouvirá mais uma palavra à sua noiva até que lhe pague, na primeira noite de casamento, o chamado Zibula munu - o abrir da boca.

Na véspera do casamento as raparigas da aldeia vão buscar à floresta a maior quantidade de lenha que lhes seja possível. São as amigas, e ainda as mulheres que têm filhas para casar, quem se encarrega deste trabalho da lenha. Dessa lenha gastar-se-á a necessária no dia da festa. A que sobra, e sobra sempre muita, pois, propositadamente se recolheu muitíssima lenha, será guardada com cuidado para ser gasta no aquecimento da água para os banhos para quando, a que hoje é noiva, venha a ser mãe.
A esta lenha que sobra até se lhe chama Bisuali bibuemba - lenha da gravidez.

Depois do 1, 2, 3, etc... parto, a lenha que sobra dos banhos da parturiente não é gasta imediatamente. Guardam-na, pelo menos umas três achas, até que a criança caminhe ou mesmo até ao parto seguinte. Existe a superstição de que se gastarem essa lenha Bisuali malu mamuana, a lenha das pernas do filho - a criança não chegará a andar ou difícil e tardiamente o conseguirá.

Na última noite de solteira todas as amigas a vão passar com a noiva. Cantam em tom lamuriento. A noiva, voltada para a parede, vai dizendo adeus a tudo e a todas também em cântico chorado.

Faz passar no canto toda a sua vida desde pequenina, trazendo as recordações mais saudosas. As amigas também lhe lembram os dias passados em conjunto, os trabalhos, as brincadeiras, as alegrias e tristezas.
Cansadas, lá para a madrugada, acabam por adormecer.

Assistimos uma noite a uma despedida destas. É verdadeiramente impressionante. Dir-se-ia que choravam alguém que nunca mais veriam...

De manhãzinha, a noiva com as amigas vai ao rio ou lagoa mais próxima lavar-se cuidadosamente. É ajudada pelas companheiras. Pode adivinhar-se o trabalho que dará esta limpeza, lembrando-nos de que, pelo menos durante um mês, se lavou e pintou, diariamente e até várias vezes ao dia, com tukula misturada com água e algum óleo de palma!

Porque descansou, comeu melhor, limpou a pele com a tukula de todas as pequenas arranhadelas, impigens e «sarnices», tem agora uma cor mais bronzeada, está mais gorda e de pele mais sedosa.

Aparentemente o dia do casamento é, para a noiva, o dia mais triste de sua vida. Não fala para ninguém. Nada diz. Não responde seja a quem for. O seu rosto traduz somente tristeza e de seus olhos correm, por vezes, lágrimas.
 


Fig. - P 27 Cortejo de casamento no lukula-Zenze



Fig. - P 28 Noivo e noiva com amigos
 


Fig. - P 29 Mais dois noivos. Repare-se na mascara de tristeza da noiva em todas as fotografias


É assim. Tem que ser assim. Não deve mostrar que sente alegria em deixar a família. Tem que deixar os seus para se juntar ao marido. Mas terá que mostrar - mesmo que no íntimo possa estar satisfeita - que é cruz, trabalho, dificuldades e freimas o que vai buscar no casamento. Necessário se torna, mostrar que tem profunda pena em deixar os seus.

Na verdade nunca chegamos a saber qual a noiva que se casa por prazer e satisfação. Parece trazer a tristeza presa a todo o seu ser. É mais máscara de dor do que outra coisa.

Não se lhe vê um olhar terno para o noivo, não se nota uma manifestação de carinho e amor. Não há um abraço, um beijo.

Mas esta falta de manifestações externas de carinho e amor (mesmo da parte do noivo) deve levar-se, antes, à conta de um culto de modéstia e recato. As manifestações de carinho, afecto, amor (v. g. carícias, abraços, beijos... ) jamais as terão à luz do sol e na presença de pessoas. Neste caso não há defeito. Há virtude.
O amor, o acto de amor e tudo o que a ele leva é sagrado demais para poder ser presenciado por estranhos.

Acabada a cerimónia na Igreja, quase sempre de manhã e casamentos católicos, organiza-se o cortejo.

Os noivos vestiram-se com o melhor que conseguiram ou puderam comprar. Um e outro, na maioria das vezes, lá para o Lukula e interior, levavam capacete, mesmo que fosse de manhãzinha o casamento e antes do sol nascer. Seguiam no cortejo quase sempre debaixo de um guarda-sol. No guarda-sol eram amarrados lenços às pontas. Sinal de festa e de alegria, mas que a noiva não mostra.

Durante o trajecto, primeiro para casa do nocivo, vão cantando e até assobiando. A um sinal dado, ordinariamente uma apitadela, 'todos param. Uma das raparigas do cortejo, escolhida entre todas, toma um lenço e com ele limpa o rosto e sapatos dos noivos.

Ao mesmo tempo um dos presentes estendia um outro lenço no caminho. Nele os convidados deitam algum dinheiro, que e recolhido pela rapariga que limpou o rosto e sapatos dos noivos. O dinheiro será para ajudar às despesas da festa.

Estas paragens repetiam-se com mais ou menos frequência, conforme a distância, maior ou menor, a que ficava a casa do noivo.
Em casa dele tomam uma pequena refeição onde aparece, ordinariamente, vinha licoroso e aguardente. Só os esposos e as testemunhas tomam parte nesta frugal refeição.

Passam a percorrer, depois, as casas das pessoas de família, dos chefes, dos amigos. Recebem ou tomam qualquer coisa em casa deste ou daquele. Os mais velhos não deixam de lhes dar conselhos e de lhes fazer recomendações. Vai-se cantando, parando, comendo e bebendo, se lhe oferecem. A noiva nada toma.
Terminada esta volta, o noivo, com os amigos que desde a igreja o acompanham, leva a esposa a casa da sogra. A noiva ali fica enquanto o noivo se vai entregar à sua alegria juntamente com os amigos. Comem e bebem.

Entretanto vai-se preparando tudo para a boda, a começar ao princípio da tarde. A família do noivo cozinha para a da noiva. A desta, para a do noivo.
Como têm de ser muitas as panelas, cavam uma espécie de pequena vala onde as assentam fazendo, depois, o fogo por baixo.
Todos à mesa, trazem as mulheres a comida. As panelas vêm em mutetes - espécie de cestos feitos com ramos de palmeira - mas as mulheres trazem-nos sem rodilha. Esta falta significa sofrimento, trabalho e, portanto, que merecem paga. Sequem em fila, encabeçada pelas mais velhas.

Se o noivo nada lhes der - mas não é fácil que isso aconteça - não deixarão a comida.
A noiva assiste ao banquete mas não come. Era sempre assim.

Mantém a mesma cara de tristeza que se viu de manhã.

Tem o capacete puxado para a frente dos olhos ou o pano que faz de véu.
Contudo, de todas as qualidades de comida, guarda-se-lhe uma parte. Comerá depois rio quarto, em casa da mãe, para onde voltará no fim da boda até à hora em que a irão buscar para a levarem para casa do marido.

Lá para o meio do banquete é trazido ao noivo um prato em que aparece coconote, saka-folha sem óleo de palma e um pouco de mandioca crua. Tem um significado esta oferta. Servirá para indicar ao noivo que, quando um dia a esposa lhe entregar somente daquilo para comer, (é a família da noiva quem apresenta este prato), ele terá que concluir que nada mais há em casa que se coma!

Não é, porém, o noivo quem come ou simula comer deste prato nesta altura do banquete de casamento. É algum dos irmãos do noivo ou alguém chegado de sua família.

Com este prato a família da noiva entrega um luandu - esteira de papiros - e uma outra esteira fina - kiteva. O irmão do noivo senta-se na esteira, que é colocada sobre a luandu. Fingirá que come. Guardará, em seguida, o luandu e a esteira.
A esta cerimónia se chama o Nsaka-makanza-bala.

Em algumas partes a noiva nem assiste à boda. Mesmo que assista, como dissemos, não comerá (ou hão comia', uma vez que certos destes usos estão. a desaparecer).

Em certos clãs, no dia do casamento, além das bodas nupciais, há um prato reservado aos cônjuges. O marido será o primeiro a comer dele; depois a mulher. Mas se ambos comem do mesmo prato e da mesma comida não é na mesma ocasião. O esposo come em sua própria casa e o prato, com a comida que ele deixa, é levado para casa da mãe da esposa ou para outra casa onde a esposa esteja. Esta, então, comerá sem mostrar; repugnância pois, se o fizesse, daria mostras de que não gostava do marido.

A isto chamam o Tambuziana itata, que traduzem por: receber a saliva um do outro.
Chamam também Tambuziana itata quando pessoas desavindas fazem as pazes e, depois, bebem da mesma garrafa ou da mesma cabaça.

Em tempos passados, mas ainda do nosso tempo, sobre as panelas da comida levavam os testos antigos repletos de símbolos e conceitos. Eram explicados aos noivos pelos velhos e velhas presentes.

Quase sempre encerravam provérbios a indicar o que deveriam ser um para o outro e como deviam conduzir-se na vida de casados.

Por mais estranho que pareça, a noiva continua sem dar um sorriso! Apresenta-se sempre muito triste, olhos cravados no chão, sem falar, caminhando sempre muito devagar.

A noiva terá ficado em casa da mãe, se não foi à boda, ou para lá volta depois desta ter acabado. Ali fica entregue à sua dor... dor aparente, pelo menos. Mudará de roupa. Está quase todo o tempo de cama e coberta. Fica como que enroscada e com os joelhos perto da boca. Tem saudades dos pais, irmãos e amigas de infância. Mesmo que não sinta esta saudade, terá que a fingir?
Podem fazer-lhe companhia no quarto. Mas não dirigirá a palavra a ninguém. A ninguém responderá.

Enquanto ela demonstra toda esta tristeza, o noivo passa alegremente o tempo com os amigos.
E o tempo vai correndo.

Pelas 9 ou 10 da noite, vêm buscar a noiva para a levarem para casa do marido. O cortejo é formado só por mulheres e raparigas. Os homens não podem tomar parte.

Há quase sempre um luar esplêndido. Coa-se através dos capinzais e das palmeiras e parece vir dar mais solenidade, e até mistério, a esta cerimónia.
A noiva não pode ir por seu pé. Por longo que seja o caminho, irá levada às costas de uma mulher a quem não haja morrido o seu primeiro filho. Seria dar pouca sorte à noiva ser conduzida por mulher que não estivesse nestas condições.

É interessante saber que, entre os judeus, era também já ao cair da noite que a noiva era levada, em palanquim, para casa do noivo (Cf. José, o Silencioso por M. Gasnier, Colecção Éfeso, pág. 96).
A noiva vai já em roupas interiores mas coberta pelo pano que lhe faz de manto.

Como nos lembramos da noite em que espiamos um destes cortejos!...

Uma das raparigas, ao fado, leva uma esteira. Servirá para a portadora da noiva repousar um pouco, colocando a noiva na esteira. É proibido à noiva poisar directamente os pés na terra.

Nestas exigências em ser levada às costas e em não poder colocar os pés directamente no chão, volte a ver-se o respeito ao Nkisi-Nsi, fonte da fecundidade que habita na terra, da fertilidade dos campos, da fecundidade da 'mulher.

As mulheres e raparigas do cortejo vão cantando. Os cânticos, no meio do silêncio da noite, ouvem-se nas aldeias mais próximas.
A noiva não diz palavra.

Mesmo que a piquem, que a magoem, que lhe puxem pelas pernas e braços, que lhe dêem beliscões, e tudo isso lhe fazem, nada dirá e tudo suportará. É que tem de começar a provar que é mulher forte, capaz de suportar as dores e trabalhos que a esperam como esposa e mãe.

Ao lado, ainda seguem mais duas pequenas com luandos e esteiras para a cama do novo casal.
Se for preciso trocar de portadora, passará das costas de uma para as da outra sem tocar com os pés em terra. E, se não for isto possível, haverá o cuidado de se estender uma esteira para que não toque com os pés no chão.

Quem vai no cortejo não deixa de cantar e até de dançar.
A entrada da aldeia do marido estende-se um dos luandos e uma esteira por cima. Ali é depositada a noiva. Encolhe-se o mais que pode e é coberta totalmente com o pano. Não tuge nem muge.

Aparentemente parece estar morta.

Em volta, em esteiras, como que a quardá-la, sentam-se as mulheres e amigas que a acompanharam.
Uma das mulheres que faz parte do cortejo, e que pertence à família da rapariga, começa a chamar, cantando, cada uma das pessoas da família do rapaz. Terão que vir dar o seu óbulo como paga em lhes trazer a noiva. Arriscam-se a ficar sem ela ou a demorar a entrega se lhes não trazem o que querem e desejam.

Se, por ventura, o rapaz ainda não pagou integralmente as coisas do alambamento ali, em público, lho deitam à cara.
Do primeiro proclama até ao dia do casamento, deveria ele ter dado à noiva uma bacia, copo, prato, colher, garfo, faca, pente...

Não o tendo feito terá que apresentar tudo isso naquela hora, doutra sorte não lhe entregarão a noiva...

Já dentro da aldeia irão parando e poisando a rapariga, que continua a não falar e nem a dar-se por aborrecida ou fatigada, quantas vezes julgarem necessárias para obrigarem o rapaz e família a cumprir o que é de lei. Por vezes há verdadeiras discussões e quase se chega a vias de facto. A família da rapariga apela para os seus direitos e interesses. A do rapaz, para os dele.

Tudo de acordo, entregue à noiva o que lhe pertence e pago o mata-bicho às portadoras e acompanhantes da noiva, eis que esta, finalmente, chega perto da casa do marido.

O cortejo que presenciamos, tendo começado pelas 9 da noite, para percorrer uma distância de uns 600 a 800 metros até à casa do noivo, terminou perto da meia noite.

Mais uma vez, pela última, mesmo junto à porta da casa do noivo, a noiva é colocada na esteira e luandu. Uma mulher da família dela vai ver o quarto e como a cama está arranjada.

E se aquilo não está como devia ser e a rapariga merecia, tudo é dito e espalhado ali diante de todos: porque ela é nova e a cama é velha; que é uma rapariga limpa e a roupa da cama está suja, etc., etc.
De nada se coíbem, nada nem ninguém poupam. Entram mesmo em assuntos bastante íntimos.

E tudo isto feito, ao som de cantares e dançares, a rapariga vai ser introduzida na casa do marido. Mais uma vez lutará, ou fingirá lutar, para não entrar.
Um pouco antes, e à vontade das mulheres da família da noiva, foram colocados os luandos e as esteiras e preparada a cama da melhor forma.

Acabará por deixar de fazer resistência, chegando a ficar verdadeiramente cansada, e, finalmente, é colocada e deitada na cama.

Antigamente chegavam a amarrar a rapariga que fosse renitente e não quisesse ir para o marido. Se continuasse nessa recusa, chegava a ser amarrada à cama, de costas para baixo, braços e pernas atadas, ficando estas suficientemente separadas para que o marido pudesse, querendo, usar do seu direito!... Costumes e... tempos...

Fica, depois de colocada na cama, com a noiva uma mulher a quem também não haja morrido o primeiro filho. Prepará-la-á e dar-lhe-á conselhos. Fica com ela até que o marido entre. Sairá imediatamente logo que ele cheque.

Dos conselhos que dava faziam parte os seguintes:

Na realização do acto matrimonial deve interpelar o marido como filho de sua sogra, nomeando o nome dela e pedir-lhe para que faça as coisas com cuidado, sem forçar e sem pressa e invocando o Nkisi das relações sexuais, o Nkoza-Mangaka.

Admitindo que a sogra se chama Landu, ela dirá:

Muana Landu, bika kinzi.
Ah! Nkoza-Mangaka...

Filho de Landu, não forces.
Ah! Nkoza-Mangaka...

E isto, em princípio, sempre que se tem relações sexuais, que não só da primeira vez.
- O acto matrimonial deveria ser realizado de lado -e ainda hoje o é, quando a gravidez está adiantada. A mulher deitada do lado esquerdo deverá cruzar a perna direita por cima das do marido, colocando o braço direito por cima do ombro esquerdo dele.

- Que seja sempre muito limpa, e que nunca vá para o acto matrimonial sem se ter lavado com cuidado. Toda a limpeza e pureza nesse acto nunca será demasiada.
Eram regras e conselhos de outrora. Ainda os são dados nos tempos de hoje? Dizem-nos que muita coisa está a desaparecer.

O marido, por sua vez, também terá recebido conselhos dos velhos.

Sobre o cortejo da noiva e entrada dos parentes no quarto nupcial, é interessante lembrar o que se passava no Ocidente, na Idade Média, e que nos é narrado por A. Adams em seu livro Reinado do Amor, trad. de Augusto Rodrigues, pág. 59.

«No dia do casamento ou do concúbito, como vulgarmente se dizia, os parentes e amigos acompanhavam os noivos, com a maior solenidade, não só à Igreja e ao 'banquete, mas também aos aposentos nupciais. A cena de «Lohengrin» de Ricardo Wagner é, neste ponto, absolutamente histórica

Não há semelhanças, contactos entre esta curta narração e a dos casamentos dos clãs do País de Cabinda?
Cremos bem que sim.
A noiva foi entregue e está em casa de seu marido.

Começam a vida de casados.
Ainda nessa noite, caso deseje que a esposa fale com ele - e não se vê porque não

pagar-lhe-á o Kusumba mbembo - o comprar a palavra, ou, o que dá o mesmo, o Zibika muniu - o abrir a - boca. E o marido «compra a palavra» à esposa por mais ou menos uns 50$00...

Na primeira noite de casados, no País de Cabinda e conforme os clãs, como já apontamos no capítulo sobre a «Casa da Tinta», - os noivos dormem, tendo junto do leito duas garrafas de vinho do Porto (ou licoroso), ou uma de bagaceira, ou duas de água, sendo urna com água pelo meio e a outra cheia.

Se o noivo deixa as garrafas de vinho do Porto no quarto, é sinal de que encontrou virgem a esposa.
Se abriu a garrafa de bagaceira e dela bebeu um pouca, significará que a noiva não estava intacta.

Se se lava com a garrafa meia de água, a mulher não estava virgem, é meia mulher; se da garrafa cheia, estava intacta.

Afirmaram-me ainda que, por vezes e sobretudo entre os Bauoio, no dia seguinte à primeira noite de casadas, os da família da rapariga iam à cama dos noivos ver se havia qualquer sinal de que ela estava virgem... A possibilidade de uma hemorragia não deve ser posta totalmente de parte.

Confira-se o que fica dito com o que Carlos Lopes Cardoso escreve:
 «Dos costumes ligados ao casamento,  O outro é o de, antes de os noivos se retirarem para consumar o casamento, uma tia estender no leito um pano ou lençol
branco. Na manhã seguinte vem verificar se este está ou não manchado de sangue. Em caso afirmativo, aquela mulher leva o lençol à mãe da rapariga, acompanhado de uma garrafa de vinho do Porto por abrir. Em caso negativo, o marido fura com um tição o pano, abre a garrafa do vinho do Porto, bebe parte e faz seguir tudo isto para casa dos sogros.»

Se o noivo encontra a noiva não virgem pode exigir (e exige) abatimento no alambamento, podendo ir até à metade dele. Obriga ainda a mulher a dizer-lhe com quem andou, levando depois - o caso para tribunal indígena, onde o violador é sempre condenado a pagar pesada multa e através do qual a família da noiva também' recuperará o que teve de descontar ao noivo.

Mas nunca vi que a falta de virgindade fosse causa de separação dos noivos ou pedido de anulação ou declaração de não válido o matrimónio. Conheci, contudo, um caso em que o marido até com um alicate, apertando os dedos da esposa, a obrigou a dizer os nomes dos rapazes com quem andara antes do casamento e depois de já se ter comprometido com ele (pela entrega da parte do alambamento chamada Mbongo zikunzikila kimigo - o dinheiro para que se dê a conhecer que a rapariga já tem «amigo», pretendente).

Se a família da noiva não procura saber os resultados, é o noivo quem envia as garrafas, segundo as circunstâncias.
Ao cantar do segundo galo, na madrugada da primeira noite do casamento - e até às oito seguintes - o marido conduz a esposa a casa da sogra. Isto, caso viva na mesma aldeia.

Se lá não viver, escolhe-se uma casa de confiança para onde irá nesses dias.

Esconde-se todo o dia na cama da mãe. Só fala baixinho com as amigas e come furtivamente debaixo do pano. Depois, durante a semana seguinte e até quase a um mês, entra e saí de casa do marido, mas sempre com a cara escondida. Durante este tempo, o mês a seguir ao casamento, fora da casa não pode falar com o marido. Só depois ficará tudo normal. Ao terminar este tempo é uma cunhada quem lhe tira o pano da cabeça e da frente dos olhos.

Puxa-lhe o pano e dá-lhe, mais ou menos, uns 5$00.

Nos primeiros oito dias, quando vai para casa da mãe ou de pessoa de confiança, cada madrugada depois de cantar o segundo galo, à noitinha é, novamente, reconduzida pela mãe ou por essa pessoa de confiança a casa do marido.

Nestes primeiros oito dias é a mãe dela quem cozinha.

Findos eles, na véspera, a mãe da rapariga e alguns membros femininos da família dela, cozinharão pela última vez e dirão à rapariga como proceder no arranjo da casa e na confecção das refeições.

A este dia chama-se o Simbisia makuku - o segurar os «mukukos», morros da formiga salalé que servem de trempe às panelas.

É o último dia em que a sogra cozinha para o genro e em que ensina mais uma vez a filha.

O genro terá que lhe pagar por ter ensinado a esposa a cozinhar e mais os direitos do Nkama Mponde, a paga das dores que teve em dar à luz aquela que agora é sua mulher. Tem ainda de lhe pagar o Ntútika Nsodu, o tirar da porcaria, o ensinar à filha como proceder e livrar-se do lixo, dos resíduos que sempre ficam na preparação da comida, as cascas de bananas, pedúnculos das folhas de mandioca, cascas de amendoim, etc., etc. É a esses resíduos que se chama Nsodu.
E a sogra lá vai com novos panos, cobertores, dinheiro...

Passará a haver uma certa deferência da sogra para com o genro. A sogra encontrando o genro deverá tomar outro caminho ou, não havendo outro meio, afastar-se para o lado e deixá-lo passar.

Não deverá entregar-lhe nada directamente para a mão. É preferível, caso não haja intermediário, colocar no chão o que tiver para entregar.

No dia seguinte a esposa começa a cozinhar. Pode confeccionar qualquer refeição menos o preparar saka-folha, o esparregado de mandioca. Fazer comida tão fraca e tão comum no primeiro dia?

Uma das cunhadas paga-lhe, com dinheiro do marido, está visto, para que ela coloque em tal ou tal lugar os resíduos da lenha, folhas, cascas, etc., etc. o Ntútika Nsodu que já vimos ser pago também à sogra.

É que, se lhe não pagarem, a esposa deita-lhes o lixo mesmo à entrada da porta!...

O sogro, sogra, cunhadas e cunhados, se quiserem que a nora ou cunhada para eles fale, também terão que pagar o Sumba Mbembo.
Mas, por mais ou menos 2$50 ou 5$00 já podem falar com ela, obter resposta e manter conversa para o futuro. Não pagando, por mais que façam e digam, ela não responderá!

A roupa antiga, usada pela rapariga quando solteira, é toda entregue à mãe. Tem roupa nova, não precisa da velha.

O esposo deve respeitar o nome da esposa e vice-versa. Mas maior é a obrigação da esposa em respeitar o nome do marido.

Por isso, não poderá pronunciar o nome do esposo, trata-se do nome de família, pois o do baptismo, ainda que sempre com respeito, pode pronunciá-lo, a não ser em caso de absoluta necessidade.

Devido ainda a este grande respeito que a esposa deve ter pelo nome do seu marido, ela deverá evitar proferir qualquer palavra homónima ou homófona que possa dar a parecer o nome do marido.

Assim, se o marido tem o nome de Tebuka, a esposa não pode dizer tébuka nem tébuka monho (recordar, recordar-se). Para dizer o correspondente a recordar-se, lembrar-se, terá que empregar a palavra lembula, do português «lembrar», ou dizer ou querer dizer o mesmo por rodeios. Também não dirá tébula - lembrar - mas sim lembula.

Se o esposo se chama Pitra - nome que pronunciam facilmente Pitala - já a esposa não dirá pitaloio (petróleo) mas nzeteloio.

Em vez de sômbuka, saltar por cima de, transpor, dirá sempre zotuka, caso o marido se chame Sômbuka. Se este tiver o nome de Peleso (de preso a mulher para se referir a alguém que esteja preso nunca dirá nandi kukala mu peleso mas, sim, nandi kukala mu «cadea» (ele está na cadeia e não ele está preso). ( João Vissers, achega por correspondência com o autor.)

A mulher que é Ndumba - meretriz - já de certa idade, se resolve ser amante de alguém, vai ter com ele, à noite, e regressa, de manhã, a casa dos pais, uma vez que as mulheres, em principio, não têm casa própria.

Daqui se pode inferir que não há mulheres de má vida chamadas de «porta aberta». Pode haver raparigas que não encontram noivo ou até que querem levar vida fácil. Vão com este ou com aquele. Podem ter vida matrimonial durante semanas, meses e até anos com certo indivíduo. Mas, por regra, não se vende a quem quer e a quem vem. Escolhe, aceita, resolve, concorda ou não. A família o saberá e receberá a sua parte do alambamento.

Mas, repetimos, mulher de má vida, de «porta aberta» a aceitar todo o «cão e gato», não se encontra, como regra, no País de Cabinda.

Se, por ventura, o amante de uma ndumba se resolve a tomá-la para mulher, mete-a dentro de casa, ordinariamente pelas 19 horas, fecha-a e vem para fora, para junto dos amigos - que já estarão avisados - e dá um tiro em sinal de que ficou com ela.

Nessa altura todos gritarão:

Abu ubele ndumba,
Abubu ueka nkazi kuela,
Uóló...

Até aqui eras meretriz,
Agora passaste a mulher casada,
Uóló... (alegremo-nos).

Quando era simples amante e vinha ter com ele, mesmo que fosse todos os dias, continuava livre para escolher, caso quisesse, um outro. Agora jamais o deverá ou poderá fazer, pois foi tomada como esposa, para o qual o marido não pôde deixar de dar o alambamento respectivo à família.

Outros procedem de forma diferente:

Na manhãzinha seguinte à noite passada com o homem que pretende a ndumba para esposa, vem a família e amarra - dois ramos de palmeira, dos mais tenros - nsoko ibá - e pergunta se a tal rapariga está em casa e gritam alto: essa tal rapariga é ndumba... mas agora quer casar.

Nesse momento, se a rapariga, na verdade, aceita casar com o tal homem que a pretende, desce da cama e vai sentar-se numa esteira que estará à porta do quarto.
Caso contrário, continua sentada na cama.

Em caso afirmativo darão os tiros da praxe e comunicam a toda a gente que a rapariga está casada.
Começa-se a dança e festa própria do casamento.

É evidente que tudo isto não se pode fazer do pé para a mão. Já há um certo acordo e certa preparação.
Estes casos mais nos provam que não há um formulário para pedir e dar o consentimento para casamento.
 

ALGUMAS REGRAS E PRINCÍPIOS APLICADOS AO:

A - CASAMENTO

Nem sempre pode ser com quem se deseja como nem sempre a ave leze apanha na lagoa o peixe que havia visto.
Exige trabalho por parte dos dois. É como tipoia que tem de ser levada certinha pelos dois portadores.

Assim como a ave que fica presa numa armadilha, assim o casamento se torna, de certo modo, urna prisão, mais para a mulher do que para o homem.
Homem que casa sem bem pensar-e mulher também que o faz desta forma - é como quem bate com a perna num cepo...

O casar não é como quem encaba um machado: não se força.
Para um bom casamento são precisas, pelo menos, três coisas (como são precisos três morros de salalé para se assentar bem a panela): casa, vestido e alimentação e o uso matrimonial que resulte em filhos.

Quem casou, casou...
Obriga a outra vida, como jibóia que não volta aos traços anteriores.
Pensar muito bem antes, não vá levar-se uma víbora na canoa da vida.
O casamento salva, ajuda e dá consideração ao homem e à mulher, como canoa munida de mpusu não se pode afundar.

«Antes que cases... vê o que fazes», não te ponhas a adivinhar.

B - MARIDO

Deve deixar a mulher alheia, que é como qualquer coisa atravessada na vida.
Deve saber o que se passa em casa como kianga (a grade do defumeiro) na lareira conhece a saída do fumo.

Só ele manda em sua esposa, como só o dono do machado o usa na sua roça.

Mesmo que, por lei, venha a possuir outra mulher, que não abandone a primeira. Também quem compra um cachimbo novo, por princípio, não deita fora o velho por lhe poder ainda vir a ser preciso.

Deve fornecer à esposa o necessário para cozinhar. Ela não pode ficar de pernas estendidas para o fogo...
É parvo e culpado se deixa que lhe tomem a mulher. É como dono descuidado que deixa que o cão lhe coma a refeição...
Deve ser protector do lar, como vampiro que sabe esperar pela noite para tratar dos seus interesses.

Não cede os seus direitos e nem dá lugar a outros, como lagoa em que o Mpinzí uma ave - pesca nenhuma outra lá vai.
Só a esposa lhe pode dar satisfação plena, que não a meretriz.

Marido que se preza traz a esposa bem arranjada e não andrajosa.
Não se deve meter com mulher-alheia, como quem destapa panela de comida que não é sua.

C - ESPOSA

Que tenha um só marido, como o Buku - cogumelo - tem um só «pé».
Que seja mulher de casa, de trabalho e de assento e não como Fondo - ave - que anda sempre de lado para lado.

Tem a protecção do marido, como pólvora guardada no polvorinho.
Vale somente enquanto unida ao marido, como bananas enquanto ligadas ao tronco da bananeira... depois começam a apodrecer...

Nem sempre está para aquentar maus tratos e pode voltar aos seus, como pato que se volta, como bracelete que se atira fora...
Tem sempre arrimo e defesa, corno morro de salalé atrás de uma árvore.

Não deve ser vadia como a andorinha...
Não irá com ninguém que a leve a ser infiel, mas como barata que foge da galinha que é sua inimiga.

Por fraca que seja, também tem os seus direitos..
É respeitada por causa de seu marido, como flor de palmeira salva pelo cacho de dendém... uma vez que se esconde por trás dele.

Nunca é superior ao marido, como a lua não o é com respeito ao sol.
Que seja de bom trabalho, que não de lindas falas somente como o rouxinol.
É casada para sempre e tem de fechar os olhos a muita coisa...
Tem obrigação de ser fiei ao marido.
Deve ser como o papagaio que não faz ninho nem cria fora do seu «habitat». Ela não aceitará fazer «ninho» fora da casa de seu marido.

Deve andar ligada ao marido como tartaruga à concha.

NZO-MPILO

Em épocas passadas havia em cada aldeia, na periferia, uma ou mais casas, onde as mulheres nos seus dias do mês iam viver.

Deviam ficar seis dias na Nzo-Mpilo (Mpilo -mênstruo).
A mulher nesses dias não podia passar pelo meio da aldeia, só pelas traseiras das casas. Não entrava em casa alguma.
A Nzo-Mpilo deveria ser construída atrás das outras e podia albergar mais do que uma mulher nas mesmas condições

Para o marido que tivesse feitiços em casa (os grandes senhores) ela não podia cozinhar. Porém, para outros podia, desde que usasse outro fogo, outra água, outra comida que não a dela.

A mulher que se encontrava na Nzo-Mpilo devia pintar, a carvão - makala mambazu - a testa para se não encontrar com o possuidor do nkisi Maluango. Se, por acaso, se vissem, ela deveria tornar imediatamente outro caminho ou direcção ou, pelo menos, entrar no capim e voltar as costas ao caminho até que passe o Nganga Maluango.

O feiticeiro Maluango é o que usa fazer o chamado Banda Mianda, o pregar os pregos num feitiço ou até num embondeiro, que faça as suas vezes e para isso haja sido escolhido.
Os lugares em que escolhe um embondeiro ou outra árvore para o Banda Mianda chamam-se Bila kinkisi-nsi - morada do Nkisi-Nsi.

A mulher que não colocar na testa o sinal de carvão, passando pela Nganga Maluango, adoecerá certamente... Terá, então, questão e será obrigada a pagar ao Nganga Maluango para que lho não venha mal algum ou maior, se já tiver adoecido!...

Nestes seus dias a mulher não podia ir onde houvesse nkisi. Estava impura.
As panelas em que cozinha (ou cozinhava), os luandos e esteiras em que dormia ou repousava, teriam de ficar na Nzo-Mpilo.

De modo algum as poderia levar para casa do marido.

NZO-BUALI

Tem este nome a casa e recinto onde a parturiente, depois de dar à luz, terá de se conservar durante o período de um ou dois meses, o período de convalescença e tratamento.

A mulher que acaba de dar à luz não pode comer da mesma panela ou beber água do mesmo moringue ou vinho da mesma cabaça donde os outros comem ou bebem, enquanto está na Nzo-Buali.
Não pode, igualmente, durante este período entrar em outra casa qualquer, nem mesmo na do marido ou família.
Viverá em casa à parte, mesmo que seja ao lado da do marido.

Ao lado da casa onde pernoita e passa a maior parte do tempo, foi arrumada e empilhada a lenha que começou a juntar desde que se sentiu grávida e onde, nos últimos dias, se fez um cercado de ramos de palmeira em volta do local onde tomará os banhos.

A bacia era, em tempos, como já dissemos - e ainda hoje em certos lugares e com certas mulheres conservadoras - uma cova onde a água, o mais quente que se possa suportar (chegam a ter escaldadelas!) será lançada cada vez, duas vezes ao dia, que toma banho.

A água sumir-se-á por essa mesma cova, ou far-se-á uma outra, ao lado, para onde será mudada e por onde desaparecerá.

Acabado o primeiro mês da Nzo-Buali, a mulher tomava uma pequena bacia, onde se encontrava tukula amassada com dendém cortado aos pedacitos, e passava por todas as casas atirando às portas um pouco dessa mistura. A esta cerimónia chamavam o Nhalimina uma bênção. A mulher que deu à luz também havia recebido a protecção e benção do Nkisi-Nsi.

Se ela não fizesse a cerimónia do Nhalimina os espíritos protectores da família (e eram o: Mbingo, Ngovo, Mabiala Mandembo, Kozo, etc., etc.) apodreceriam!

O não cumprimento deste cerimonial poderia trazer mates para toda a aldeia e seria causa de «fundação», que levaria a família da parturiente a pagar pesada multa (a toda a aldeia, se não houvesse feito o Nhalimina, ou aos donos das casas por onde não houvesse passado e aspergido as porias com a tukula).
No segundo mês teria de voltar a fazer o mesmo.

Terminado o prazo dos banhos, tapava a cova que fazia de bacia e untava-se com tukula durante mais um ou dois meses.

Para estas untadelas a tukula era pisada e misturada juntamente com cascas ou folhas de plantas tidas por medicinais, como as de nfombotó ou nzo-zinfunzi. Para isso, as folhas e cascas são colocadas em água, em infusão, sendo depois a tukula amassada com essa água.
A partir do segundo nhalimina já podia voltar a comer e a beber de onde os outros comiam e bebiam.

A planta nzo-zinfunzi (casa da nfunzi - galinha do mato) tomava (e toma) esse nome por as galinhas do mato andarem sempre perto. ( Estes usos e costumes, ligados à Nzo-Mpilo e Nzo-Buali  -  e a tantas outras coisas -  estão a desaparecer.

E se ainda, particularmente, se conserva um ou outro, exteriormente pouco ou nada se nota.)
 

A INFIDELIDADE CONJUGAL

O homem não está, e nunca esteve, dentro da ética deles, sujeito ao rigor da fidelidade que prende e a que obriga a esposa.

Por isso, pode ter relações com qualquer mulher livre. Mas a mesma ética os obriga a guardar absoluto respeito à mulher de outrém.

Tomar a mulher alheia - e torna-se já de outrém desde que alguém comece a pagar o alambamento - é sujeitar-se a duros castigos e, no tempo presente, sobretudo, a pesadas multas.

Quem falasse, outrora, para uma mulher do Rei, no recinto de sua residência, era cruelmente supliciado e, de ordinário, levado com a cúmplice ao lugar do suplício onde lhes eram cortadas as cabeças.

Os corpos eram retalhados aos pedaços e ficavam à vista de toda a gente, pelo menos um dia inteiro.

Por vezes, os Reis e grandes senhores, depois do parto de uma das esposas, se havia certa desconfiança, chegavam a sujeitar um escravo da dita esposa à prova da Nkasa. Se o escravo acabava por cair morto, inferia-se que a mulher havia sido infiel e adúltera e era condenada a morrer queimada e o cúmplice a ser enterrado vivo.

Procurar seduzir uma mulher do Rei ou até, simplesmente, espreitá-la a tomar banho era sujeitar-se à pena capital.
A mulher tem que ser, portanto, rigorosamente fiel e deve afastar a mínima suspeita. Obriga em qualquer altura. Nada se lhe perdoa. Nada se. lhe desculpa.

É que a mulher infiel, adúltera, atrai castigos para todos e, de um modo especial, para o próprio marido.

Assim, se depois de um acto de infidelidade da mulher o marido vier a adoecer... a doença é castigo, castigo do Nzambi por intermédio do Nkisi-Nsi. A mulher para que o marido recupere a saúde terá que lhe confessar que pecou, com quem o fez, quantas vezes e com quantos.

O marido recuperará a saúde (?!!) e irá tratar do assunto junto do tribunal indígena, ou até mesmo antes da cura, se assim o preferir.
Como veremos, este tribunal não é peco na aplicação de multas para que fiquem de escarmento aos delinquentes.

O Manhema em casos destes, pelo menos de recidivos, condenava os cúmplices à morte pelo selengo - a formiga carniceira - ou a serem pregados a um embondeiro - banda mianda - ou enterrados vivos...
Nos tempos actuais servem-se de multas, a pagar pelo cúmplice, que também chegam a tirar certos apetites...

Uns dois casos para exemplificarmos isto. São casos absolutamente certos. Não damos os nomes das aldeias nem das pessoas por motivos bem óbvios.

NA ALDEIA DE X

F.....  foi encontrado, em 1943, na cozinha da mulher de outrém, estando lá ela.

Levado ao tribunal indígena, a multa foi de 50 cobertores, dos finitos, que na altura custavam, cada um, 30$00. Mil e quinhentos escudos, portanto, custou o atrevimento.

Mas é que este F. era useiro e vezeiro. Não era a primeira vez a ser apanhado. Por isso a multa lhe foi a 50 cobertores.

Entrar na cozinha de outrém, estando lá a mulher e pedir-lhe, por exemplo, lume, é tomado por todos como solicitação pura e simples.

NA ALDEIA Y

S. trabalhava na Mavinha. Era longe. Não podia vir pernoitar a casa.

A mulher foi-lhe infiel.

Por coincidência S. adoeceu e veio para casa. A mulher não levou o caso para coincidência, mas atribuiu-o a castigo do Nkisi-Nsi por causa das suas faltas. Vai, por isso, confessar tudo ao marido: que tinha tido relações com três homens, com A, B e C.
 

O assunto foi para o tribunal indígena.

Qual foi a sentença?

Cada um dos adúlteros pagaria ao marido ofendido a quantia de 200$00 e mais uma garrafa de aguardente (que, na altura - 1944 - custava 50$00).
 

A família da mulher, que tem culpa, pois deve aconselhá-la e vigiá-la - para isso é que recebeu também o alambamento - foi condenada ao pagamento de 300$00 e a uma garrafa de aguardente.
 

Para o júri que resolveu o assunto: 50$00 cada um dos delinquentes; 50$00 e mais uma garrafa de aguardente a família da mulher.

Portanto, o marido recebeu 900$00 em dinheiro e quatro garrafas de aguardente (valor de 200$00); o júri, 200$00 e uma garrafa de aguardente.

Nada mau para a época de 1944!...

E ali se paga tudo na altura.

Pode ser que o multado não tenha dinheiro ou as coisas.

Mas as pessoas de família virão imediatamente em seu socorro, São verdadeiramente solidários.

Com a falta confessada ao marido, assunto resolvido pelo tribunal, a vida familiar volta a correr perfeitamente e normalmente.

Nunca vimos um caso destes ser causa de separação ou divórcio.

Só os maus tratos infligidos pelo marido ou a falta de filhos no matrimónio podem vir a ser causas de separação sentenciada por tribunal com a devolução, evidentemente, de todo ou parte do alambamento.
 

O homem e mulher Cabinda não foge dos filhos. Pelo contrário. E querem os filhos para que possam estar perto deles, para que possam, mesmo, viver com eles.

Veja-se este caso de sabor tão pitoresco:
Convivia uma rapariga Cabinda com um europeu (e ainda convive).
Tem dele uma criança. Mas a mãe teme, mais dia menos dia vir a ficar sem o filho. E vai ter com o Senhor, com o branco.

- «Senhor, eu não o quero deixar. Mas queria ter um filho de preto, porque o branco muitas vezes leva o nosso filho e a gente não fica com nenhum. Por isso, eu queria ter um filho de preto para ficar comigo»...
 

E o branco deixou. E agora, à conta do branco, ela tem em casa dele o filho que é deles mais o filho do preto...
Foi o próprio branco quem isto me contou... E disse-me que não teve coragem para negar a autorização pedida.

Fazer comentários a isto? Porquê e para quê?
A nossa mentalidade ocidental será capaz de reconhecer alguma grandeza e dignidade em tudo isto?

Entre os casados, como já se afirmou, o maior desgosto é o da falta de filhos.
De quem é a esterilidade? Dos dois? É esterilidade individual, absoluta, relativa e por incompatibilidade entre os cônjuges só dependente do seu agrupamento?

Eles perguntarão mui simplesmente: de quem é a «culpa»?
E, então, por consentimento tácito, presumido ou até de comum acordo, cada um deles procurará ter relações com outrém (e já não haverá o crime de infidelidade) para saber do verdadeiro "culpado"! ...

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