sexta-feira, 6 de abril de 2018

O ÌTÀN E O ESE NA ACULTURAÇÃO DA PALAVRA


Luiz L. Marins

Atualização em
Abril de 2018


Aos estudiosos mais atentos, uma explicação técnica sobre o uso da palavra ìtàn (história) no corpo de um léselése (poema) se faz necessária, esclarecendo o conceito das palavras ìtàn (história) e ese (verso), e o seu uso.

Algumas palavras da língua ioruba, em virtude das convenções gráficas adotadas depois da colonização europeia, vêm recebendo importantes modificações conceituais e criando alguns embaraços linguísticos. Uma destas palavras é a palavra ìtàn (história).

Em língua portuguesa, uma história geralmente é contada em prosa[1], mas pode ser em verso[2], como no caso de “Os Lusíadas”, de Camões, sem deixar de ser, ou ter, o conceito de história. Portanto, história, para os falantes da língua portuguesa, pode ser em prosa ou verso.

Mas, em ioruba, isto não ocorre, pois, a palavra ioruba para história é ìtàn, enquanto que a palavra para verso, é ese. Como o idioma ioruba era originalmente ágrafo. Supomos que, talvez seja este o motivo pelo qual os dicionários de ioruba não registraram uma palavra nesse idioma que carregue os dois conceitos, tal qual ocorre com a palavra “história”, na língua portuguesa.

Na diáspora afro-brasileira a palavra ese não é usual, ficando restrita ao meio intelectual. A palavra ìtàn, ao contrário, é muito conhecida, mas adquiriu o conceito utilizado em português para palavra “história”.

Assim, arriscamos a afirmar na área da linguística que a palavra ioruba ìtàn está aculturada, mesmo em terras iorubas. A seguir, vamos dar alguns exemplos disso:

Pierre Verger apud Julio Braga, “O jogo de Búzios”, 1988, p. 27 na transcrição abaixo relata um encontro mensal dos babalaôs. Repare que Verger usa a palavra “história” quando está referindo-se aos versos de Ifá, percebendo-se claramente embutido o conceito europeu sobre a palavra “verso” (ese):

“[...] escuta-los repetir docilmente, verso por verso, uma nova história. É assim que os babalaôs presentes transmitem uns aos outros a sua ciência.”

Wande Abimbolá em Ifá, A Exposition of Ifá Literaty Corpus, 1976, p. 43, referindo-se aos ese Ifá, da mesma forma, utiliza o conceito inglês da palavra story, assim conceituando:

“[...] Ese Ifá pode ser uma simples história sobre [...]

Juana Elbein em “Os Nagô e Morte”, 1993, apresenta dois interessantes registros etnográficos da tradição oral por ela recolhida em pesquisa de campo na Nigéria, os quais trazem, em língua nativa, o uso da palavra ìtàn (história) em dois extensos ese (poemas) do oòsétùrá[3] de Èsù, utilizando esta palavra de forma aculturada, mesmo em língua ioruba:

“Èyè ni ìtàn Òsetùá odù Ifá. Ìtàn Èsù ni ònà ti Èsù ti Èsù gbà tí n fi'n gbé ebo lo esè Olódùmarè [...] (p. 139)

“Esta é a história de Òsetùwá tal qual é revelado pelo Odù Ifá. Diz a história como Èsù chegou a transportar todas as oferendas aos pés de Olódùmarè [...] (149)

Itàan Èsù! Níbi tí Èsù gbé gba àgbà [...] (p. 171)

A história de Èsù, do modo como Èsù tomou a primazia [...]

Pelo exposto, do ponto de vista técnico, é correto o uso da palavraa ìtàn com o significado de história para um ese (poema) ioruba, devido à aculturação linguística. Tal forma procura atender aos conceitos da diáspora, dos falantes de língua portuguesa, mantendo, porém, tanto quando possível, a forma do poema ioruba tradicional na sua construção poética. Tecnicamente o classificamos como “um poema de versos livres”.


·       Publicado em: “Obàtálá e a Criação do Mundo Ioruba”, 2013.


[1]  A maneira natural de falar ou de escrever, sem forma retórica ou métrica, por oposição ao verso. (Aurélio, 1995, p. 533)

[2]  Cada uma das linhas constitutivas de um poema, o gênero poético. (Aurélio, 1995, p. 671)

[3] Signo divinatório de Ifá.

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