quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Iyewà a bela mulher

Iyewà é o Òrìsà da alegria, do belo, dos cantos, da vida e das belezas que a vida nos da.


Iyewá é quem rege todas as mutações, seja elas orgânicas ou inorgânicas; é o Òrìsà responsável pela mudança das águas, de seu estado sólido para gasoso ou vice-versa. Ela é quem gera as nuvens e chuvas: quando olhamos para o céu e vemos as nuvens formando figuras, pois ali esta IYewá, dando diferentes forma. Iyewá é responsável pelo ciclo interminável de transformação da água em seu diversos estados. Ela esta ligada às mutações dos vegetais e animais; ela esta ligada às mudanças e transformações, seja brusca ou lentas; IYewá é o desabrochar de um botão de rosa, ela é uma lagarta que se transforma em borboleta, ela é a água que vira gelo e o gelo que vira água, ela quem faz e desfaz. Iyewá é a própria beleza contida naquilo que tem vida é o som que encanta, é a alegria, é a transformação do mal para o bem: enfim Iyewá é a vida.


Yemoja Tuman/Aynu/Iewa = sobre o mar a névoa das águas (azul claro e branco 1 x 1)

Seu dia é o sábado,
Branco com azul claro
Sua saudação é HIHÓ(RIRRÓ)!
Sua comida canjica branca em cima vai uma cobra feita de batata doce com olhinhos vermelhos e lingua.


Lenda
Iyewá era caçadora de grande beleza, que cegava com veneno quem se atrevesse a olhar para ela. Iyewá casou com Omulu, que logo demonstrou ser marido ciumento. Um dia, envenenado pôr seu ciúme doentio, Omolu desconfiou da fidelidade da mulher e a prendeu em um formigueiro. As formigas picaram Iyewá quase até a morte; e ela ficou deformada e feia. Para esconder sua deformação, sua feiúra, Omolu então a cobriu com palha-da-costa vermelha. Assim todos se lembrariam ainda como Iyewá tinha sido uma caçadora de grande beleza.

Arquétipo
Os regidos pôr Iyewá são pessoas extremamente alegres, adoram cantar, dançar e aproveitar no máximo tudo que a vida pode lhes oferecer de bom. São pessoas generosas e bondosas, adoram novidades, são criativas. Porem um pouco volúveis e facilmente mudam de opinião e pensamentos, principalmente com um assunto novo em sua vida. São pessoas que estão sempre modificando as coisa e situações, pois detestam rotina. Além disso são geralmente pessoas dotadas de muita beleza, externa e interna.

xe te xe da
ewá ewá oju ewá


ie ie lepake lemã,
ie ie doco lodo.

Nanã Burukun


Nanã proprietária de um cajado.

Nanã Burukun = muito velha cultuada entre as Yemonjas, em algumas casas, mas não é uma yemanjá, veja quem é e as qualidade de nanã.

Nanã salpicada de vermelho, suas roupas parecem banhadas em sangue, orixá que obriga o fon a falar nagô (ketu). Água parada que mata derrepente, ela mata uma cabra sem usar faca.

É considerada "orixá mais antigo do mundo". Quando orumilá chegou aqui para frutificar a terra, ela já estava. Nanã desconhece o ferro por trata-se de um orixá da pré-história, anterior a idade do ferro. O termo nanã significa raiz, aquela que se encontra no centro da terra.

Arquétipos:
São conservadores e presos aos padrões convencionais estabelecidos pelos homens. Calmos, as vezes mudam rapidamente de comportamento, tornando-se guerreiros e agressivos; quando então, podem ser perigosos, o que assusta as pessoas. Levam seu ponto de vista ás últimas conseqüências. Quando mãe são apegadas aos filhos e muito protetoras. São ciumentas e possessivas. Exigem atenção e respeito, são pouco alegre e não gostam de muita brincadeiras.
São majestosos e seguros nas ações e procuram sempre o caminho da sabedoria e da justiça.

Itãns:
Nanã era esposa de ogum e ocupava o cargo de juíza no daomé. Só julgava os homens, sendo muito respeitada pelas mulheres que eram consideradas deusas.
Ela morava numa bela casa com jardim. Quando alguém apresentava alguma reclamação sobre seu marido, ela amarrava a pessoa numa arvore e pediu aos eguns para assustá-la.
Certa noite, yansan reclamou de ogum e ele foi amarrado no jardim. A noite, conseguiu escapulir e foi falar com ifá. A situação não podia continuar e, assim, ficou acertado que oxalá tiraria os poderes de nanã. Ele se aproximou e ofereceu a ela suco de igbin, um tipo de caramujo. Ao beber o preparado, nanã adormeceu. Oxalá então vestiu-se de mulher e, imitando o jeito de nanã, pediu aos eguns que fossem embora de seu jardim para sempre.
Quando nanã acordou e percebeu o que oxalá tinha feito, obrigou-o a tomar o mesmo preparado de igbin e seduziu o orixá. Oxalá saiu correndo e contou para ogum o que havia acontecido. Indignado, este cortou relações com nanã. E é por isso que nas oferendas a nanã não é usado nenhum objeto de metal.
Uma outra lenda registra que, numa reunião, os orixás aclamaram ogum como o mais importante deles e que nanã, não se conformando em ser derrotada por ele, assumiu que não mais usaria os utensílios de metal criados pelo orixá guerreiro (escudos e lanças de guerra, facas e setas para caça e pesca). Por isso, que ela não aceita oferendas em que apresentem objetos de metal.

Outro Itãn
Em sua passagem pela Terra, foi a primeira iyabá e a mais vaidosa, em nome da qual desprezou seu filho primogênito com Oxalá, Omulu, por ter nascido com várias doenças de pele. Não admitindo cuidar de uma criança assim, acabou abandonando-o no pântano. Sabendo disso, Oxalá condenou-a a ter mais filhos, os quais nasceriam anormais (Oxumarê, Ewá e Ossaim), e a baniu do reino, ordenando-lhe que fosse viver no mesmo lugar onde abandonou seu pobre filho, no pântano.

Itãn de nanã
Nana fornece a lama para a modelagem do homem

Dizem que quando Olorum encarregou Oxalá de fazer o mundo e modelar o ser humano, o orixá tentou vários caminhos. Tentou fazer o homem de ar, como ele. Não deu certo, pois o homem logo se desvaneceu. Tentou fazer de pau, mas a criatura ficou dura. De pedra ainda a tentativa foi pior. Fez de fogo e o homem se consumiu. Tentou azeite, água e até vinho-de-palma, e nada. Foi então que Nana veio em seu socorro, apontou para o fundo do lago com seu ibiri, seu cetro e arma, e de lá retirou uma porção de lama.
Nana deu a porção de lama a Oxalá, o barro do fundo da lagoa onde morava ela, a lama sob as águas, que é Nana.
Oxalá criou o homem, o modelou no barro, com um sopro de Olorum ele caminhou, com a ajuda dos orixás povoou a terra. Mas tem um dia que o homem morre e seu corpo tem que retornar à terra, voltar à natureza de Nana Buruku.
Nana deu a matéria no começo, mas quer de volta no final tudo o que é seu.

Qualidades;

Obáíyá = é um Òrisà ligado a água, a lama e aos pântanos. (lilás escuro com azul)
Ajàosi = é uma Nàná guerreira e agressiva que veio de Ifé, e confunde-se às vezes com Obá. É uma divindade das águas doces, e que se veste de azul com vermelho. (azul com vermelho, 4 azuis e 1 vermelho)
Oporá = veio de Kétu, coberta de òsun vermelho. É a mãe de Obalùaiyé, ligada a terra, temida, agressiva e irascível. (azul com vermelho, 4 azuis e 1 vermelho)
Burúkú (o mal) = também é chamada Olú waiye (senhor da terra), ou Oló wo (senhor do dinheiro) ou ainda Olusegbe. Este Òrisà veio de Abomey; ligado à água doce dos pântanos, usa um ibirí azul. (lilás escuro com azul ou lilás escuro com vermelho)


Saudação: salubá nanã!
Dia da Semana: Sexta-feira ao lado de yemanjá
Número: 08 e seus múltiplos
Cor: azul claro com vermelho cristal ou lilás, dependendo da característica da Mãe
Guia: toda da mesma cor.
Oferenda: canjica branca refogada com cheiro verde.
Ferramentas: todos adornos femininos em prata, peixe, leque, caramujos, barco, âncora, leme, conchas, lua, moedas e búzios
Ave: Galinha branca
Quatro pé: ovelha
No seu ritual não é usada a faca de metal

domingo, 4 de janeiro de 2009

Pierre Verger e os resíduos coloniais: o “outro” fragmentado.

Pierre Verger e os resíduos coloniais: o outro fragmentado
Juana Elbein dos Santos
Publicado na Revista “Religião e Sociedade”, n. 8, Julho de 1982,

Reflexões em torno do artigo de Pierre Verger “Etnografia religiosa iorubá e probidade científica”
cujas três versões a direção da revista Religião e Sociedade teve a integridade de fazer-me chegar.


Dizia já Roger Bastide(1), cuidadosamente omitido no artigo de Verger, que são difíceis de aceitar textos capazes de revelar toda a riqueza do pensamento afro-brasileiro e do seu sistema simbólico como uma filosofia coerente de visão de mundo e do destino do homem. “É como se a sociedade branca - diz Bastide – desejosa de aceitar o candomblé como folclore ou espetáculo artístico, sentisse sua segurança intelectual ameaçada pela competição, em base igual, de uma filosofia outra que não a sua [o grifo é nosso].”

Eu diria que alguns etnólogos, entre os quais Verger, fascinados pela “beleza” e pelo “exotismo” do “bom primitivo”, se limitam a fotografa-lo, descrevê-lo. São compiladores, contadores de histórias, de ritos, de heróis. Parece que não acompanham o andamento progressivo do acontecer contemporâneo. Parecem não compreender que se está encerrando o ciclo das descrições, dos traços culturais, dos documentos justapostos. Ainda não descobriram as subjacências simbólicas, a relação do visível com o invisível, do movimento com o gesto, do transcender do discurso manifesto dos mitos e ações estruturadoras de identidade.

É por isso que nestas primeiras reflexões sugeridas pelo artigo de Verger, nesta quase carta, não me parece importante desmistificar as incongruências manifestas e as dificuldades de manejo do código simbólico através das quais Verger pretende discordar de informações e dados etnográficos de meu trabalho.

É obvio que, ao procurar desacreditar a minha “probidade científica” [honestidade científica], não se propõe apenas a discutir essa ou aquela divergência etnográfica. O problema é bem mais crucial. O ataque pessoal de Verger encobre a tentativa de controlar e até invalidar divergências ideológicas subjacentes. Nessa oposição, espectador, colecionador e fotógrafo versus participante engajado e agitador de percepções, que se atreve a interpretar e caracterizar uma epistemologia tradicional estão em debate questões que se extrapolam as divergências pessoais e nos tornam representantes de problemas e posições abrangentes bem mais importantes.

Devo dizer que em outras circunstâncias não responderia ao artigo. Em primeiro lugar, porque desde minha chegada ao Brasil, a leitura da bibliografia sobre a cultura negra, em particular no que se refere à religião, em confronto coma a minha convivência iniciática pessoal nas próprias comunidades, afastou-me do exame crítico minucioso de trabalhos alheios.

Não que a avaliação bibliográfica careça de importância, muito ao contrário. Apenas a análise dos discursos subjacentes, a recolocação dos mesmos no contexto histórico e ideológico em que foram produzidos exige uma longa e séria dedicação específica – espaço e tempo que preferi investir em propostas e objetivos mais concretos, emergentes de minha própria experiência e envolvimento sócio-comunitário.

Esse envolvimento me levou, por um lado, a aprofundar minha experiência iniciática, e, por outro lado, não só a vivê-la e incorpora-la, mas também a aprofundar a reflexão erudita, a nível individual e de intercâmbio, impulsionando intensa atividade em instituições como a SECNEB (2), no desenvolvimento de projetos e programas como o as Mini-Comunidade Oba-Biyi (3) e o Centro de Documentação e Comunicação Pluricultural (4), e na realização de seminários e eventos vários (5).

Em segundo lugar, retomando minha pouca dedicação crítica sobre outros autores, devo insistir que mesmo em minhas publicações anteriores raramente me estendi sobre autores determinados, apenas assinalando o que chamei de “desmistificação ideológica” de certa literatura afro-brasileira (6). Com mais razão, tratando-se de Verger, por considerar que suas limitações e suas posições no processo da ciência antropológica e no da participação do negro na conjuntura nacional e internacional, emergem tão claramente de seus trabalhos que nem se fazia necessário sublinha-las.

O que de fato me leva desta vez a abrir exceção é que o objetivo central do artigo de Verger, ao pretender não apenas debater, mas obviamente desacreditar nosso (7) trabalho, traz implícito o intento de confundir e atacar posições que, provisoriamente, chamarei de descolonizadoras, e pelas quais Verger parece sentir-se bastante ameaçado, tão atingido que, para legitimar seus embates, tenta uma completa inversão de situações.

Parece claro que Verger pretende confundir o leitor apresentando-me como alguém que utiliza informações de dicionários e autores ultrapassados, os quais, inconsciente ou propositadamente, deturpam e/ou detratam os valores dos povos africanos. Quer colocar-me Verger na trilha desses autores, como a fantástica inventora de um sistema utopicamente coerente e dinâmico. Quem teve a oportunidade de acompanhar o desenvolvimento gradual dos trabalhos (8) que antecederam e culminaram em Os Nagô e a morte, deve no mínimo, ficar desconfiado ante essas colocações de Verger. Sem dúvida, devo agradecer-lhe a estupenda capacidade de abstração intelectual e de criatividade que me outorga, pois inventar ou fantasiar um tão complexo sistema simbólico, que dever ter levado séculos e mais séculos até se sedimentar e se estruturar, é na verdade investir-me de um poder criativo, lúcido e coerente que, penso, só pode ser atribuído ao meu orixá Oduduwa, orixá da criação da terra, e, conforme Verger, objeto aparente de meu pecado original. Odúa é um princípio feminino ou masculino? É aí o começo da questão, porque em relação à crítica que ele faz de minha percepção do sistema como um todo, não se trata de fato de Odúa, cujo significado discutiremos em outra oportunidade. Trata-se em suma da relação feminino/masculino. E com referência às imputações de Virgem, qualquer que seja o nome dado à entidade ou princípio, a metade inferior de do Igba-dú é a representação coletiva e deslocada da Iya-agba, a mãe anciã, símbolo do princípio feminino, nossa grande mãe que, não por acaso, Verger repetidamente qualifica de feiticeira.

A profunda dificuldade de Verger, como a de outros indivíduos, é de compreender, aceitar, manejar a relação feminino/masculino.

Entre as várias objeções de Verger em aceitar Odúa como princípio feminino destaca-se a conhecida disputa entre Odúa e Obatalá, pela primazia da criação, que Orunmilá consegue apaziguar. Será que a relação das Iya-wa com as entidades masculinas são tão idílicas? Verger sabe perfeitamente que não. O equilíbrio feminino/masculino é difícil e delicado, pois números mitos e rituais o atestam. A dificuldade de Verger em aceitar o conflito nessa relação é contraditória, reprimida e no mínimo, pessoal. E quando estes princípios são colocados em termos de genitores míticos e de “ventres fecundados”, podemos imaginar perfeitamente o desassossego que causam.

Retomando a inversão de situações pretendida pelo articulista, além de aliar-me a imaginosos pesquisadores, envereda Verger por caminhos ainda mais sinuosos, apostando na aparente ingenuidade ou na falta de informação de algum leitor desprevenido.

Diz Verger que foi testemunha de entrevistas por mim dirigidas com “enérgica insistência e paixão para provar teorias pré-estabelecidas”. Tratar-se ia de sacerdotes indefesos, condescentes ou maldosos. Aqui o cientista probo (honesto) entra em areias movediças, num espaço ético que merece uma leitura mais acurada.

Verger oculta cuidadosamente que desde a minha chegada a Salvador, em 1963, fui iniciada e convivi estreitamente com pessoas exponenciais de duas das mais respeitadas comunidades nagôs, estruturadas, uma em torno da tradição dos orixás, e outra em torno da tradição dos ancestrais, os Egun. Mais ainda, tenho a felicidade de compartilhar meu cotidiano com meu esposo, companheiro e colega, uma das mais nobres e sérias personalidades da cultura e da religião nagô brasileira. Meus “dados” são identificações, vivências e reflexões. Não precisam ser extorquidos de quem quer que seja. É um longo aprendizado, com atividades, conversas e trocas com mestres, irmãos e colegas. Não tenho necessidade, como certos pesquisadores, de comprar escritos inéditos, de remunerar e ocultar informantes e tradutores ou escamotear fontes. Na verdade, os autores antigos mencionados por Verger são quase desconhecidos no Brasil. Seus livros são raros e são quase inacessíveis. Só vim tomar conhecimento deles pelo próprio Verger, cujas longas citações ocupavam quase por inteiro suas primeiras publicações. Muito pelo contrário. É bem conhecida minha posição em relação ao que denominei “antropologia iniciática”.

Em Os Nagô e a Morte, eu afirmava: “Devido ao fato de que a religião nagô constitui uma experiência iniciática no decorrer da qual os conhecimentos são apreendidos por meio de uma experiência vivida ao nível bipessoal e grupal, mediante um desenvolvimento paulatino pela transmissão e absorção de uma força e de um conhecimento simbólico e complexo a todos os níveis de pessoa, e que ela representa a incorporação vivida de todos os elementos coletivos e individuais do sistema, parece que a perspectiva que convencionamos chamar “desde dentro” se impõe quase inevitavelmente.

É certo que a absorção de uma série de valores coletivos e individuais e o fato de os viver numa inter-relação de grupo não é suficiente para os fins de uma análise e de interpretação desses valores. É preciso, pois, coloca-los em perspectiva e reestruturar conscientemente os elementos, suas relações particulares, revelando assim seu simbolismo (9).

É também necessário precisar, como já fiz insistentemente em outras oportunidades, nossa posição em relação ao material africano. Da riquíssima experiência e patrimônio acumulados durante nossas várias estadas na África Ocidental, só utilizamos como referências para nossas publicações aquelas cuja evidência empírica, funções, concomitâncias e equivalências nos permitiam ampliar e verticalizar conhecimentos e percepções próprias a nossas comunidades brasileiras. A “insistência e paixão” com que procurávamos os sítios históricos e míticos e nos debruçávamos sobre temas, genealogias e onomástica determinados não pretendiam provar nenhuma “teoria pré-estabelecida”. Visando especificamente refletir sobre a visão de mundo no Nagô em seus polos de concentração em Salvador, os estudos e levantamentos realizados por mim e meu marido favoreciam os aspectos comparativos e se concentravam fundamentalmente naqueles lugares onde a tradição oral no Brasil indicava como sendo sua própria origem africana.

Havia, sim, paixão e deslumbramento quando personagens, títulos, ritos, emblemas e textos tradicionais africanos eram reconhecidos, dando apoio, esclarecendo e aprofundando valores e ações transmitidos da escravatura aos nossos dias. Havia a procura das analogias estruturais, a necessidade de percorrer o processo das continuidades, de perceber não apenas as similaridades exteriores, mas os significados, elaborações e mudanças.

É secundário se o nome de tal ou qual Exu não existe ou não coincide. É fundamental que tanto no Brasil como na África, sem Exu não há rito, não há Ifá, não há destino. É verdadeiramente inimaginável a puerilidade com que Verger se refere a Exu, sem conseguir enxergar sua complexidade e seus múltiplos desdobramentos, e se não for proposital, me parece verdadeiramente primária a confusão que pretende instalar entre o condutor e o poder conduzido. Talvez a confusão esteja mesmo instalada nele, dada a dificuldade que parece ter em extrapolar o anedótico. Exu é o transportador de axé – o Elebo, o Eleru – como um fio é o condutor de eletricidade.

Dinâmica, processo, contradições, dialética, propulsão, não parecem ser conceitos fáceis de aceitar pra alguns etnógrafos. Isso não é gratuito. Há uma evidente coerência. Para colecionadores meticulosos, o ethos de um povo é visto em planos, á atemporal. Processo e propulsão significam movimento, mudança.

A dinâmica gera transcurso, gera uma dimensão histórica, contextual, suma dimensão social e política.

Assim, Verger não consegue mergulhar na própria tese de nosso trabalho, não distingue o principal do secundário, o conceito de axé, de sacrifício e morte como vivências, elaborações e estratégias culturais, míticas e simbólicas, de individuação e reciclagem dos poderes coletivos e cósmicos.
A ruptura do espaço ético me permite exorcizar remanescentes de coleguismo e até de uma pseudo-irmandade em Xangô. As críticas de Verger não correspondem apenas a preocupações de natureza científica. A sua manipulação da noção de probidade se apoia em tergiversações propositais, limitações pessoais e metodológicas legitimadas por uma auto-atribuída e imobilizante “exatidão factual” esvaziada de conteúdos filosóficos.

Me parece importante tratar de examinar e compreender o que se oculta por detrás do aparente zelo científico do artigo. Procurar resumir as subjacências, os propósitos e as verdadeiras divergências. Ao coloca-las no quadro mais amplo das ciências sociais e da etnografia religiosa nagô, sou levada a focalizar três aspectos: 1) o ideológico, 2) o metodológico ou das percepções e 3) o ético. Em realidade, estes três aspectos se relacionam e são intermutáveis.

Dos comentários do artigo se deprende que a maior dificuldade parece relacionar-se com a capacidade de perceber o nível simbólico do material factual. É nesse nível precisamente que acreditamos ser possível analisar a natureza e o significado de textos e ações, reconstituindo a trama de suas inter-relações, capazes de estabelecer nexos e propósitos, permitindo perceber sequencias, estrutura e processo.É a interpretação simbólica, a relação do manifesto com seus conteúdos latentes, que permite tornar explícita a realidade factual.

Em outras palavras apreender os elementos e os valores “desde dentro” numa convivência iniciática no seio das comunidades e ao mesmo tempo poder abstrair dessa realidade empírica as relações de conjunto, seus significados simbólicos, numa abstração consciente “desde fora”, permitiria uma visão integradora, uma proposta epistemológica, que por mais heurística que possa ser, admite um “outro”, um sujeito, uma gestalt básica, um alter coerente e “inteiro”.

Deter-se com minúcia na teogonia, por mais rica e inspiradora que possa ser, sem examinar sua profundidade teológica, a complexidade epistemológica da religião, é colocar essa teogonia num nível primitivo, num estágio inferior – ainda mais tratando-se de “crenças” trazidas pelos africanos escravos, e assim associadas “às camadas mais baixas de nossa população”. Subjaz nesse enfoque dicotomizante a visão colonialista.

A projeção ideológica de autores como Verger dificulta-lhes a visão integradora, neutralizando o portador cultural como sujeito social específico.

Esses autores não apenas atribuem a abstrações intelectuais as tentativas epistemológicas. Sua ênfase nos costumes e cultos exóticos parecem levar a destituir os africanos e seus descendentes do fato de terem consciência de seu sistema de pensamento, de possuírem autoimagem, elaborações intelectuais e estratégicas positivas de ação. Conclui-se das colocações de Verger – tal como os autores colonialistas – não acredita que sociedades tradicionais, onde o saber é transmitido de modo proverbial, por parábolas, por relações interpessoais concretas sejam capazes de gerar doutrina e conhecimento teológico.

Essa posição parece implicar não só a impossibilidade de transcender o nível puramente descritivo, como a incapacidade do negro de transcender o empírico refletindo sobre sua natureza profunda. Puxando o fio, não se custará a chegar por esse caminho a posições eivadas de racismo. Ao africano, apenas o atávico, o sensorial, o hedonismo projetado; ao europeu, a capacidade da razão. Dessa maneira, os ideólogos a serviço da dominação colonial esvaziam o colonizado de sua consciência de alteridade, de sua capacidade de produzir civilização, e transformam seu patrimônio cultural em expressões fragmentadas desarticulando os significantes dos significados. Essa visão folclorizante é o instrumento certo para introduzir, na realidade, fermentos de alienação e cooptação.

O contexto colonial se caracteriza fragmentação e pela folclorização. A ação descolonizadora, ao contrário, restitui uma identidade e um conteúdo próprios. Integra, por uma decisão até radical, de perceber as especificidades estruturadoras que permitam a recomposição e o manejo do processo histórico.

A perspectiva de uma continuidade básica nos permite também uma compreensão mais coerente das variáveis, da diversidade de modelos e situações, das elaborações instrumentadas em instituições que recompõem uma “afirmação existencial” peculiar, um self diferenciado.

Ao contrário, as armadilhas ideológicas de Verger, defendendo noções de “pureza” de origens conduzem ao conservadorismo, à repetição estéril, à estagnação.

Elitista, unilinear e imobilizante, a “veracidade”, a “exatidão” do patrimônio cultural estaria determinada geograficamente. Verger supõe verdadeiros os dados por ele colhidos nos lugares de origem, Oio, Ifé, etc., como se a cultura tradicional desses lugares não houvesse sofrido o impacto da colonização e as mudanças próprias de povos vivos. Ao esfacelar os traços e não distinguir a continuidade dos conteúdos latentes nas variáveis com que eles se revestem no processo de resistência e luta por um espaço social, ele descarta como incorretas todas as transformações e mudanças. Com petulância axiomática, rotula de periféricas e inexatas todas as produções culturais de populações mais afastadas desses centros e, por extensão, das populações negras da diáspora. Essa colocação “purista” nega precisamente o que existe de mais potente nessas populações, que é sua forma criativa, o poder de recria-se na identidade (10).

Refletir sobre a função da ideologia e seus efeitos me leva apensar ainda sobre atitudes éticas, pessoais e profissionais. Acredito que o embasamento ideológico permeia não só os métodos e concepções, como também o tipo de comunicação e a conduta do pesquisador em relação ao “outro”.

Há uma estreita relação entre o espaço ético, a produção intelectual e a qualidade de comunicação e conduta em relação ao “outro”.

A visão anedótica, folclorizante e fragmentada, ao esvaziar o “objeto” de suas capacidades, leva o pesquisador a atitudes complexas, de proteção imobilizante e paternalista.

Assim é que Verger – como outros profissionais – parecia preocupada com a salvação do que entendia como parte do patrimônio, justificando a transferência de peças sagradas – até de colunas e templos – para museus e instituições europeias. Esse sentimento protetor, não só não é compartilhado pelas autoridades africanas pós-coloniais, como inclusive deu origem a fortes manifestações de repúdio na frente do Musée de L’Homme, em Paris, durante o célebre movimento de maio. Estudantes e intelectuais exigiam a devolução das coleções às instituições dos respectivos países de origem (11) .

Essa mesma compulsão paternalista leva o nosso crítico a temer a “contaminação” das tradições, confirmando sua fraca crença no poder criativo, de discernimento e de autogestão de nossas populações.

Apoiando-se nessa ideologia paternalista e conservadora, esses intelectuais pretendem deter o monopólio autocrático da verdade. Investidos como únicos representantes e detentores do código cultural, dificilmente conseguem aceitar e/ou compartilhar novos enfoques, que possam invalidar suas posições ou desloca-los do poder. Porque é exatamente disso que se trata. Não cabe a menor dúvida que nossas divergências são insanáveis e irreversíveis. Como irreversíveis são a escravatura, o colonialismo e tratos ismos que favorecem a inflação folclórica, a pureza e a preservação congeladora do primitivo sadio e estético.

Repetimos que não se trata apenas de divergências acadêmicas ou de uma probidade científica manipulada, de compreensão e/ou tradução de algumas palavras ou traços. Trata-se de enfoque de conjunto, de radicalizar os conceitos de percepção, de comprometimento público e de responsabilidade histórica. Tem razão o Sr. Verger, não estamos mais na época de Nina Rodrigues. Mudam os donos dos códigos.

A antropologia, as ciências sociais estão se descolonizando. Hoje, os países africanos e latino-americanos, as chamadas “minorias”, estão estruturando novos institutos e novos cientistas. Ainda em dificuldades, os intelectuais estão se questionando. Depois de tantos genocídios, guerras pela independência e lutas, o exercício decidido da descolonização e a afirmação das alteridades como “sujeitos sociais” numa coexistência dialética e democrática nos parecem ser o melhor caminho para nossas nações substancialmente pluralistas.

[Transcrito do original por Luiz L. Marins]

NOTAS

  1. Roger Bastide, “O estado atual da pesquisa afro-americana na América Latina”, in Serèpègbè, nº 2, Salvador, SECNEB, 1975, PP. 3-10.
  2. Em 1974 reunimos a experiência de figuras exponenciais da comunidade negra brasileira à de cientistas sociais e fundamos a Sociedade de Estudos da Cultura Negra do Brasil. A SECNEB desenvolve programas de pesquisa, documentação e promoção da população negra através da associação da investigação e reflexão sistemáticas com a vivência dos problemas reais das comunidades negras e de sua participação tecido social do Brasil.
  3. Diante do alto índice de evasão e repetência escolar da população infantil das comunidades negras de Salvador, criamos o GTE, Grupo de Trabalho em Educação, através do projeto piloto Mini-Comunidade Oba-Biyi, numa das mais estruturadas comunidades – terreiro em São Gonçalo do Retiro, Cabula, Salvador.
  4. Há três anos começamos a implantar o Centro de Documentação e Comunicação da SECNEB, reunindo documentaristas, cineastas e artistas, muitos integrantes das próprias comunidades negras. Propõe-se o Centro a contribuir significativamente para guardar e veicular a memória grupal e institucional da população negra, seu processo histórico, seus valores estruturais e seus desdobramentos contemporâneos. O Centro não só desenvolve um programa sistemático de documentação e arquivo, mas também promove intensa atividade experimental, baseadas nas informações e materiais colhidos através de pesquisas, estudos e depoimentos.
  5. Gostaríamos de levantar um dos eventos mais significativos pelos temas levantados e pelo alto gabarito dos participantes, Seminário “Simbologia e linguagem na diáspora negra: ritos e dramatizações”, julho de 1980.
  6. “Os Nagô e a Morte”, pp. 20-23.
  7. O conteúdo das notas 2, 3, 4, e 5, foi precisamente para configurar o alcance de publicações e atividades que extrapolam amplamente posições pessoais.
  8. Refiro-me às pesquisas e a alguns artigos e ensaios anteriores a 1972 realizados em colaboração com Deoscoredes M. dos Santos, especificamente: West African SacredArt and Rituais in Brazil, Institute African Studies, University of Ibadan, 1967 ; Ancestral Worship in Bahia: the Egun Cult, in Journal de La Societé dês Americanistes, t. LVII, Paris, 1969 ; La Religion Nagô Génératice et Reserve de Valeurs Culturelles au Brésil, Colloque International sur Les Valeurs de civilsation de La religion traditionalle de l’Afrique Noire, Cotonu, SAC ET UNESCO, 1970 ; Èsù Bara Láróye – a comparative study, Institute African Studies, University of Ibadan, 1971 ; Èsù Bara, Principle of Individual Life in the Nago System, Collooque International sur La Notion de Persnone em Afrique Noire, CNRS, Paris, 1971.
  9. “Os Nagô e a Morte”, pp. 16 e seg.
  10. Bastide enxergava com incrível lucidez o processo complexo de nossa sociedade pluralista e os problemas ideológicos emergentes. Em um dos seus últimos trabalhos afirmou: O importante é achar novos métodos de análise que possam elucidar fenômenos que até agora tem sido descurados porque foram tratados somente em termos de uma perspectiva limitadas e de categorias datadas do século XX. Então se tornará claro que a cultura negra não está como parece a alguns, congelada num sistema de defesa rígido demais para mudar, mas é uma cultura viva, capaz de constante criação mantendo o passo com os ritmos de mudança na sociedade global, da qual não é marginal, mas um elemento dialético (Bastide, op. cit. pg. 16)
  11. Lamentamos o episódio em que Verger foi envolvido a algum tempo atrás ligado ao desaparecimento a uma famosa escultura africana. Foi uma situação constrangedora e gratuita, apenas compreensível, pois suspeitas dessa ordem são o resultado de atividades prévias e permeações ideológicas que sensibilizaram as autoridades e os intelectuais pós-coloniais. Diz Fanon que “quando o contesto colonial desaparece, o intelectual ainda portador desses valores não mais consegue coexistir na ex-colônia” (Frantz Fanon, Les damnés de La terre, Paris, Maspéro, 1968).



    Veja também: Etnografia religiosa iorubá e probidade científica, Pierre Verger

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