Por Luiz L. Marins
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Agosto 2021 [1]
Revisto e atualizado
em outubro de 2021
Resumo
O texto analisa
as fontes e a falta de informantes de alguns mitos afro-brasileiros sobre uma
talvez homossexualidade entre os orixás, considerando finalmente que, por falta
de rigor científico, tais mitos não devem ser considerados como legítimos
dentro da literatura mitológica afro-brasileira.
FONTES DUVIDOSAS
J. Vansina, no artigo “A tradição oral e sua metodologia”, História
Geral da África, V. 1, UNESCO, 2010, chama a atenção para os procedimentos
científicos de um trabalho de pesquisa minimamente aceitável e legítimo. Diz
Vansina na página 164:
[...] Assim, cada trabalho deverá explicar como as
tradições foram coletadas, e fornecer uma breve lista de fontes, e informantes,
que possibilitará ao leitor formar uma opinião sobre a qualidade da coleta, e
compreender por que o autor escolheu uma determinada fonte, em vez de outra.
Pela mesma razão, cada fonte oral deve ser citada separadamente no trabalho. O
trabalho que diz: “...a tradição conta que...” [ou: “...pesquisa de campo em...”]
faz uma generalização perigosa [...] (o colchete é nosso).
Nas mídias sociais afro-brasileiras, tem gerado polêmicas
alguns mitos sobre possíveis relações homossexuais entre os orixás,
especialmente os mitos de Oxum e Iansã, Oxossi e Logunede. Entretanto, estes
mitos, como veremos, não possuem nenhum crédito por falta de fontes, ainda que
sejam encontrados em livros de autores famosos.
Mostraremos aqui porque estes mitos devem ser desconsiderados,
não por causa da suposta homossexualidade entre as divindades, mas por falta de
seriedade da pesquisa dos autores que os publicaram pela primeira vez, como diz
Vansina acima.
Os trabalhos de origem diretamente responsáveis pela
mitologia GLBT entre os orixás na diáspora afro-brasileira são:
·
O livro SANTOS E DAIMONES, de Rita Laura Segato,
publicado pela Universidade de Brasília, 1995.
·
A tese de mestrado LOCE LOCE META RÊ-LÊ, de Luís
Felipe Rios, Universidade Federal de Pernambuco, 1997.
Rita Segato
Informa ter trabalhado na cidade de
Recife, no bairro da Linha do Tiro, na região de Beberibe, numa casa de santo,
sem citar o nome, na qual morou por seis meses, e depois, mais seis meses nos
arredores de Água Fria, Encruzilhada e Beberibe.
Rita Segato não declara o(s)
informante(s), nem a(s) casa(s) pesquisada(s), limitando-se a dizer que se
trata de “pesquisa de campo”. A própria autora, na página 20, declara na
introdução, que omitiu os informantes.
[...] no curso da minha pesquisa, participei de todos os tipos de
atividades de culto ou vinculadas de alguma forma à vida do culto e abertas a
uma pessoa não-iniciada e de sexo feminino.
Depois de um tempo, algumas restrições se relaxaram e me foi permitido um
acesso mais privilegiado. presenciei inúmeros encontros de mães e pais-de-santo
com seus filhos-de-santo e clientes.
Acompanhei, de dentro, o dia-a-dia de quatro terreiros, frequentei com
assiduidade outros doze além dos mencionados e visitei muitos mais,
familiarizando-me com os diversos temas de conversação abordados habitualmente
pelo "povo do santo", sejam de caráter religioso, pessoal ou jocoso,
como também ocorre em outras tradições, existem graus diferentes de compressão
e elaboração das nações religiosas; assim, fiéis com maior antiguidade e em
posições de maior responsabilidade terão uma sofisticação maior no tratamento
do corpus de conceitos do culto.
Inclusive, pode-se falar da existência de um conhecimento vulgar,
simplificado, do sistema de crenças, um verdadeiro folclore ou pequena
tradição, onde não é frequente achar formulações divergentes com as dos grandes
especialistas a cargo do sacerdócio do culto.
Embora não seja a única abordagem possível, meu trabalho concentrou-se
nos discursos sobre o culto emanados das fontes que identifiquei como de maior
prestígio nos meios ligados ao culto de Recife, assim como dos círculos
próximos a elas.
Na inscrição
etnográfica da minha observação decidi, na maior parte dos casos, omitir os
nomes dos personagens que retrato, cujas falas cito. Poucas exceções foram
feitas, especialmente no caso de pessoas já mortas e de uma notável
mãe-de-santo já idosa. A omissão desses nomes e sua substituição por outros
fictícios foi uma decisão difícil e dolorosa para mim, que queria dar, em
princípio, a esses personagens, o lugar e o registro na memória histórica que
eles merecem. Essa teria sido a minha contribuição para com quem faz, dia a
dia, o esforço, muitas vezes incompreendido, de elaborar e passar à frente um
saber valioso e sofisticado como o que aqui apresento ao leitor [...]
SEGATO, Rita. Santos
e Daimones, pg. 20
A autora Rita Segato informa que decidiu
omitir os nomes dos informantes, como se isso não tivesse nenhuma importância,
e apenas a palavra dela seria suficiente para dar credibilidade a um tema tão
polêmico.
Luís Felipe Rios
Não tivemos acesso à tese de mestrado de
1997, de Luiz Felipe Rios, por isso apresentamos aqui extratos do artigo com o
mesmo nome LOCE LOCE META RÊ-LÊ, publicado na revista Polis e Psique,
vol. 1, 2011. Vejamos o que diz Luiz Felipe na nota 2 do referido artigo:
[...] Para
tomar o texto mais fluído, reconto os mitos que me foram relatados de forma
mais livre, não fazendo menção a quem dos meus interlocutores contou o que.
Concebo que os
mitos fazem parte da memória coletiva do Candomblé, e, portanto, não possuem
autoria pessoal.
Para um leitor
mais curioso sobre como os mitos se expressam nos relatos pessoais, remeto a
Rios (1997) [...]
RIOS, Luís
Felipe. Loce Loce Meta Re-Lê, 2011.
Luís Felipe diz que tais mitos pertencem à memória coletiva do Candomblé e não possuem um autor que possa ser referenciado. Isto é compreensível, porém, nesta temática esperava-se que, ao menos, o autor citasse em quais casas ouviu tais mitos.
Prandi
É preciso anotar ainda que mitos de uma suposta homossexualidade
entre os orixás na diáspora, só se tornaram conhecidos do público através do
livro “Mitologia dos Orixás”, 2001, Cia. Das Letras, do professor
Reginaldo Prandi. Na página 33 do prólogo, Prandi diz:
[...] É difícil atestar a procedência de um mito, isto
é, onde ele teria sido criado, se na África ou na América [...] hoje em dia é
quase impossível saber com que fonte aprendeu o informante [...]
Assim sendo, especialmente no caso dos
mitos GLBT entre orixás, consideramos que o autor, Prandi, não usou do rigor
científico ao selecionar estes mitos para sua coletânea, uma vez que eles
carecem de fontes confiáveis, como veremos a seguir.
OS MITOS:
Oxum seduz
Iansã
Este mito mostra uma suposta relação homossexual entre Oxum
e Iansã. Foi publicado por Reginaldo Prandi no livro “Mitologia dos “Orixás”,
pg. 325, tendo como fonte o livro: "Santos e Daimones", de
Rita Laura Segato, p. 403. A autora, fonte de Prandi, porém, não diz o
informante, nem a casa em que o mito teria sido colhido.
[...] Assim,
um dia, Oxum passou e Iansã estava na porta da casa dela. Iansã era muito bela,
muito atraente, mas Oxum era mais esperta e mais sem-vergonha. Oxum, vendo
Iansã tão linda, disse para si: vou cantar ela, pensando em derrubar a coroa de
Iansã, e passou na frente dela com sua moringa de água na cabeça cantando a
toada: "Baba é/ que mi fana dan / que mi fa de o". Foi
passando e rebolando.
Iansã primeiro
ficou chateada e disse que não queria nem escutar falar, que ela não gostava
dessas coisas, mas saíram juntas e, finalmente, Iansã cedeu.
E Oxum foi tão
safada que, uma vez que Iansã cedeu. E Oxum ficou com ela, e tudo aconteceu:
Oxum passou a gostar de uma outra criatura.
Então, Iansã
foi buscá-la para bater nela, e Oxum teve que se refugiar dentro do rio, onde
Iansã não pode segui-la (Oxum é a dona das águas doces, no Brasil, é um orixá
de terra).
De fato, Oxum
foi obrigada a fugir para não apanhar de Iansã e não conseguiu tirar proveito
do que fez [...]
SEGATO, Rita. Santos
e Daimones. Pg. 403/4
Este suposto mito Oxum como um(a) orixá lésbica, que após
seduzir Iansã, a abandona por outro amor.
Rita Segato nada diz sobre o informante, ou onde tal mito
teria sido colhido, de forma que o povo de santo afro-brasileiro deve refutar
este mito como falso, não pela suposta relação homossexual, mas pela falta de
credibilidade no trabalho de recolha do mito, pela falta da citação de
informantes, e não informar, ao menos, a casa pesquisada.
Logunedé é
possuído por Oxóssi
Este mito que mostra uma suposta
relação homossexual entre Oxossi e Logunede. Foi publicado no livro de
Reginaldo Prandi, “Mitologia dos Orixás”, pg. 140. Prandi informa como
fonte uma “pesquisa de campo” de Luís Fernando Rios, Recife, Pernambuco.
Foi publicado como
artigo: “Loce Loce Metá Rê-Lê”, Polis e
Psique, vol. 1, n. 3, 2011, pg. 212, Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, remetido pelo autor na nota número 2, para sua própria tese de mestrado na
Universidade Federal de Pernambuco, em 1997.
Importante esclarecer que mito não é do batuque Rio Grande
do Sul, mas sim, seria do Xangô de Recife. Ele apenas foi publicado em uma
revista acadêmica gaúcha.
LOGUNEDE SE VESTE DE MULHER
[...] Edé não gostava de estar nas terras de
Oxossi. Este era bastante rude com o garoto, sobretudo quando ele apresentava
maneirismos próprios das iabás.
Assim, logo
que tinha uma chance, ele se disfarçava de iabá e entrava no reino da sua mãe,
onde só mulheres podiam estar. Frequentemente ele era confundido com a própria
Oxum.
Certo dia, uma
das mulheres do reino, encontrando-se com a rainha das águas doces, pôs em
causa a sua identidade. Disse para ela que a verdadeira Oxum estava na mesa das
iabás, onde estivera há poucos minutos. Oxum apressa-se para desmascarar a
impostora. E qual não foi a sua surpresa: encontrou sob vestes femininas o seu
amado filho travestido.
Contudo, as performances de Edé quase sempre se traíam. Ele não sabia lidar bem com atividades, com as tarefas domésticas, as tarefas e fazeres próprios das mulheres [...]
OXOSSI ESTUPRA LOGUNEDE, SEU FILHO
[...] Em outra ocasião, houve uma grande festa no mundo
dos deuses e Logun Edé não tinha roupas adequadas para ir a tal evento.
Quando Oxum saiu de casa, o menino tomou uma das muitas
vestes da mãe e uma coroa, tendo o rosto coberto por uma franja de canutilhos
(fila).
Chegando ao baile todos ficaram impressionados com a
beleza da misteriosa jovem. O curioso Ifá, o orixá da adivinhação, resolveu
descobrir a identidade “da moça” e levantou o filá. Envergonhado, Edé fugiu
para a floresta.
Seu pai, encantando com a beleza do filho travestido de
iabá, o segue, e lá o possui sexualmente. [...]
A NOTA 2
Os mitos em si, não importam. O que realmente importa para
o nosso trabalho é esta nota 2. Nela, Rios declara que recontou os mitos “de
forma livre, sem mencionar os informantes, quem contou o que”. Vejamos:
[...] Para tornar o texto mais fluído, reconto os mitos
que me foram relatados de forma mais livre, não fazendo menção a quem dos meus
interlocutores contou o que.
Concebo que os mitos fazem parte da memória coletiva do
candomblé, e, portanto, não possuem autoria pessoal.
Para um leitor mais curioso sobre como os mitos se
expressaram nos relatos pessoais, remeto a Rios (1997) [...]
Como vemos, este mito sobre uma suposta relação homossexual
entre Oxossi e Logunedé não tem nenhuma base científica, não há informantes, e nenhuma
casa foi citada como base para a coleta do mito.
O argumento de tratar-se memória coletiva não é embasamento
para tal procedimento. Em algum local este mito foi ouvido, e este local
deveria ser citado, para que o trabalho pudesse ter o mínimo de
legitimidade.
Rios informa que os detalhes da pesquisa estariam na
dissertação de mestrado, que tem o mesmo nome do artigo, mas não conseguimos
localizar até o momento.
CONSIDERAÇÃO
FINAIS
Diante do exposto entendemos que estes mitos devem ser
desconsiderados por não apresentarem por parte dos autores um informante ou
local confiável para credibilizar a pesquisa de um tema polêmico como esse,
conforme recomenda Vansina.
Um artigo acadêmico que informa apenas ser uma “pesquisa de
campo”, é, no mínimo, uma afronta à inteligência.
Neste momento lembramos a fala do professor Roberto Motta,
antropólogo, professor doutor da Universidade Federal de Pernambuco, que
escreve na apresentação do livro de Anilson Lins, Xangô de Pernambuco, Editora Pallas, a seguinte crítica aos
próprios acadêmicos, embora seja um. Vejamos:
[…] O primeiro destes méritos é a fidelidade
ao vivido. Ao vivido, quero dizer, àquilo que as pessoas fazem, à sua realidade
material e cotidiana, em contraposição ao que vem infelizmente sendo tão comum
na produção antropológica, isto é, a atitude diametralmente oposta que consiste
em confinar-se o antropólogo a uma espécie de gueto, em que os pesquisadores –
se ainda pesquisadores – tratam seus próprios modelos ou daquilo que querem
impor à realidade.
Deixam
de ser cientistas e abandonam-se a elucubrações, não a respeito do que as
coisas são, mas sobre como deveriam ser para corresponderem às utopias de que
se fazem muitas vezes representantes. Utopias que envolvem uma tentativa de
domínio, uma reivindicação de poder.
Em nome do relativismo cultural e da igualdade entre os povos, antropólogos, sociólogos e assemelhados, estão é ferozmente tratando de impor à realidade o único modelo de história que consideram válido, com origens no ideário do período que tenho chamado período intramural[2] […].
ANEXOS
[1]
Publicado primeiramente blog Ile Axé Nagô Kóbi em novembro de 2017. Acesso em
22/08/2021:
https://iledeobokun.blogspot.com/mitos-afrobrasileiros-sobre-orixa-lgbt.html
[2]
“Intramural”
refere ao que acontece internamente, termo geralmente empregado na área médica
para designar tumores internos.
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