sábado, 2 de outubro de 2021

MITOS AFRO-BRASILEIROS SOBRE ORIXÁ GLBT

 Por Luiz L. Marins

https://luizlmarins.wordpress.com

 

Agosto 2021 [1]

 


Revisto e atualizado em outubro de 2021

 

 

Resumo

 

O texto analisa as fontes e a falta de informantes de alguns mitos afro-brasileiros sobre uma talvez homossexualidade entre os orixás, considerando finalmente que, por falta de rigor científico, tais mitos não devem ser considerados como legítimos dentro da literatura mitológica afro-brasileira.

 

FONTES DUVIDOSAS

 

J. Vansina, no artigo “A tradição oral e sua metodologia”, História Geral da África, V. 1, UNESCO, 2010, chama a atenção para os procedimentos científicos de um trabalho de pesquisa minimamente aceitável e legítimo. Diz Vansina na página 164: 

 

[...] Assim, cada trabalho deverá explicar como as tradições foram coletadas, e fornecer uma breve lista de fontes, e informantes, que possibilitará ao leitor formar uma opinião sobre a qualidade da coleta, e compreender por que o autor escolheu uma determinada fonte, em vez de outra. Pela mesma razão, cada fonte oral deve ser citada separadamente no trabalho. O trabalho que diz: “...a tradição conta que...” [ou: “...pesquisa de campo em...”] faz uma generalização perigosa [...] (o colchete é nosso).

Nas mídias sociais afro-brasileiras, tem gerado polêmicas alguns mitos sobre possíveis relações homossexuais entre os orixás, especialmente os mitos de Oxum e Iansã, Oxossi e Logunede. Entretanto, estes mitos, como veremos, não possuem nenhum crédito por falta de fontes, ainda que sejam encontrados em livros de autores famosos. 


Mostraremos aqui porque estes mitos devem ser desconsiderados, não por causa da suposta homossexualidade entre as divindades, mas por falta de seriedade da pesquisa dos autores que os publicaram pela primeira vez, como diz Vansina acima.


Os trabalhos de origem diretamente responsáveis pela mitologia GLBT entre os orixás na diáspora afro-brasileira são:

 

·       O livro SANTOS E DAIMONES, de Rita Laura Segato, publicado pela Universidade de Brasília, 1995.

 

·       A tese de mestrado LOCE LOCE META RÊ-LÊ, de Luís Felipe Rios, Universidade Federal de Pernambuco, 1997.



Rita Segato

 

Informa ter trabalhado na cidade de Recife, no bairro da Linha do Tiro, na região de Beberibe, numa casa de santo, sem citar o nome, na qual morou por seis meses, e depois, mais seis meses nos arredores de Água Fria, Encruzilhada e Beberibe.

Rita Segato não declara o(s) informante(s), nem a(s) casa(s) pesquisada(s), limitando-se a dizer que se trata de “pesquisa de campo”. A própria autora, na página 20, declara na introdução, que omitiu os informantes.

 

[...] no curso da minha pesquisa, participei de todos os tipos de atividades de culto ou vinculadas de alguma forma à vida do culto e abertas a uma pessoa não-iniciada e de sexo feminino.

 

Depois de um tempo, algumas restrições se relaxaram e me foi permitido um acesso mais privilegiado. presenciei inúmeros encontros de mães e pais-de-santo com seus filhos-de-santo e clientes.

 

Acompanhei, de dentro, o dia-a-dia de quatro terreiros, frequentei com assiduidade outros doze além dos mencionados e visitei muitos mais, familiarizando-me com os diversos temas de conversação abordados habitualmente pelo "povo do santo", sejam de caráter religioso, pessoal ou jocoso, como também ocorre em outras tradições, existem graus diferentes de compressão e elaboração das nações religiosas; assim, fiéis com maior antiguidade e em posições de maior responsabilidade terão uma sofisticação maior no tratamento do corpus de conceitos do culto.

 

Inclusive, pode-se falar da existência de um conhecimento vulgar, simplificado, do sistema de crenças, um verdadeiro folclore ou pequena tradição, onde não é frequente achar formulações divergentes com as dos grandes especialistas a cargo do sacerdócio do culto.

 

Embora não seja a única abordagem possível, meu trabalho concentrou-se nos discursos sobre o culto emanados das fontes que identifiquei como de maior prestígio nos meios ligados ao culto de Recife, assim como dos círculos próximos a elas.

 

Na inscrição etnográfica da minha observação decidi, na maior parte dos casos, omitir os nomes dos personagens que retrato, cujas falas cito. Poucas exceções foram feitas, especialmente no caso de pessoas já mortas e de uma notável mãe-de-santo já idosa. A omissão desses nomes e sua substituição por outros fictícios foi uma decisão difícil e dolorosa para mim, que queria dar, em princípio, a esses personagens, o lugar e o registro na memória histórica que eles merecem. Essa teria sido a minha contribuição para com quem faz, dia a dia, o esforço, muitas vezes incompreendido, de elaborar e passar à frente um saber valioso e sofisticado como o que aqui apresento ao leitor [...]

SEGATO, Rita. Santos e Daimones, pg. 20

 

A autora Rita Segato informa que decidiu omitir os nomes dos informantes, como se isso não tivesse nenhuma importância, e apenas a palavra dela seria suficiente para dar credibilidade a um tema tão polêmico.

 

 

Luís Felipe Rios

 

Não tivemos acesso à tese de mestrado de 1997, de Luiz Felipe Rios, por isso apresentamos aqui extratos do artigo com o mesmo nome LOCE LOCE META RÊ-LÊ, publicado na revista Polis e Psique, vol. 1, 2011. Vejamos o que diz Luiz Felipe na nota 2 do referido artigo:

 

[...] Para tomar o texto mais fluído, reconto os mitos que me foram relatados de forma mais livre, não fazendo menção a quem dos meus interlocutores contou o que.

Concebo que os mitos fazem parte da memória coletiva do Candomblé, e, portanto, não possuem autoria pessoal.

Para um leitor mais curioso sobre como os mitos se expressam nos relatos pessoais, remeto a Rios (1997) [...]

RIOS, Luís Felipe. Loce Loce Meta Re-Lê, 2011.

 

Luís Felipe diz que tais mitos pertencem à memória coletiva do Candomblé e não possuem um autor que possa ser referenciado. Isto é compreensível, porém, nesta temática esperava-se que, ao menos, o autor citasse em quais casas ouviu tais mitos.


Prandi

 

É preciso anotar  ainda que mitos de uma suposta homossexualidade entre os orixás na diáspora, só se tornaram conhecidos do público através do livro “Mitologia dos Orixás”, 2001, Cia. Das Letras, do professor Reginaldo Prandi. Na página 33 do prólogo, Prandi diz:

 

[...] É difícil atestar a procedência de um mito, isto é, onde ele teria sido criado, se na África ou na América [...] hoje em dia é quase impossível saber com que fonte aprendeu o informante [...]

 

Assim sendo, especialmente no caso dos mitos GLBT entre orixás, consideramos que o autor, Prandi, não usou do rigor científico ao selecionar estes mitos para sua coletânea, uma vez que eles carecem de fontes confiáveis, como veremos a seguir.

 

 

OS MITOS:

 

Oxum seduz Iansã

 

Este mito mostra uma suposta relação homossexual entre Oxum e Iansã. Foi publicado por Reginaldo Prandi no livro “Mitologia dos “Orixás”, pg. 325, tendo como fonte o livro: "Santos e Daimones", de Rita Laura Segato, p. 403. A autora, fonte de Prandi, porém, não diz o informante, nem a casa em que o mito teria sido colhido.

 

[...] Assim, um dia, Oxum passou e Iansã estava na porta da casa dela. Iansã era muito bela, muito atraente, mas Oxum era mais esperta e mais sem-vergonha. Oxum, vendo Iansã tão linda, disse para si: vou cantar ela, pensando em derrubar a coroa de Iansã, e passou na frente dela com sua moringa de água na cabeça cantando a toada: "Baba é/ que mi fana dan / que mi fa de o". Foi passando e rebolando.

Iansã primeiro ficou chateada e disse que não queria nem escutar falar, que ela não gostava dessas coisas, mas saíram juntas e, finalmente, Iansã cedeu.

E Oxum foi tão safada que, uma vez que Iansã cedeu. E Oxum ficou com ela, e tudo aconteceu: Oxum passou a gostar de uma outra criatura.

Então, Iansã foi buscá-la para bater nela, e Oxum teve que se refugiar dentro do rio, onde Iansã não pode segui-la (Oxum é a dona das águas doces, no Brasil, é um orixá de terra).

De fato, Oxum foi obrigada a fugir para não apanhar de Iansã e não conseguiu tirar proveito do que fez [...]

SEGATO, Rita. Santos e Daimones. Pg. 403/4

 

Este suposto mito Oxum como um(a) orixá lésbica, que após seduzir Iansã, a abandona por outro amor.

 

Rita Segato nada diz sobre o informante, ou onde tal mito teria sido colhido, de forma que o povo de santo afro-brasileiro deve refutar este mito como falso, não pela suposta relação homossexual, mas pela falta de credibilidade no trabalho de recolha do mito, pela falta da citação de informantes, e não informar, ao menos, a casa pesquisada.  

 

 

Logunedé é possuído por Oxóssi 

 

Este mito que mostra uma suposta relação homossexual entre Oxossi e Logunede. Foi publicado no livro de Reginaldo Prandi, “Mitologia dos Orixás”, pg. 140. Prandi informa como fonte uma “pesquisa de campo” de Luís Fernando Rios, Recife, Pernambuco.


 Foi publicado como artigo: “Loce Loce Metá Rê-Lê”, Polis e Psique, vol. 1, n. 3, 2011, pg. 212, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, remetido pelo autor na nota número 2, para sua própria tese de mestrado na Universidade Federal de Pernambuco, em 1997.


Importante esclarecer que mito não é do batuque Rio Grande do Sul, mas sim, seria do Xangô de Recife. Ele apenas foi publicado em uma revista acadêmica gaúcha.

 

    LOGUNEDE SE VESTE DE MULHER

 

 [...] Edé não gostava de estar nas terras de Oxossi. Este era bastante rude com o garoto, sobretudo quando ele apresentava maneirismos próprios das iabás.

Assim, logo que tinha uma chance, ele se disfarçava de iabá e entrava no reino da sua mãe, onde só mulheres podiam estar. Frequentemente ele era confundido com a própria Oxum.

Certo dia, uma das mulheres do reino, encontrando-se com a rainha das águas doces, pôs em causa a sua identidade. Disse para ela que a verdadeira Oxum estava na mesa das iabás, onde estivera há poucos minutos. Oxum apressa-se para desmascarar a impostora. E qual não foi a sua surpresa: encontrou sob vestes femininas o seu amado filho travestido.

Contudo, as performances de Edé quase sempre se traíam. Ele não sabia lidar bem com atividades, com as tarefas domésticas, as tarefas e fazeres próprios das mulheres [...]

 

OXOSSI ESTUPRA LOGUNEDE, SEU FILHO

 

[...] Em outra ocasião, houve uma grande festa no mundo dos deuses e Logun Edé não tinha roupas adequadas para ir a tal evento.

 

Quando Oxum saiu de casa, o menino tomou uma das muitas vestes da mãe e uma coroa, tendo o rosto coberto por uma franja de canutilhos (fila).

 

Chegando ao baile todos ficaram impressionados com a beleza da misteriosa jovem. O curioso Ifá, o orixá da adivinhação, resolveu descobrir a identidade “da moça” e levantou o filá. Envergonhado, Edé fugiu para a floresta.

 

Seu pai, encantando com a beleza do filho travestido de iabá, o segue, e lá o possui sexualmente. [...]

 


A NOTA 2 

  

Os mitos em si, não importam. O que realmente importa para o nosso trabalho é esta nota 2. Nela, Rios declara que recontou os mitos “de forma livre, sem mencionar os informantes, quem contou o que”.  Vejamos:

 

[...] Para tornar o texto mais fluído, reconto os mitos que me foram relatados de forma mais livre, não fazendo menção a quem dos meus interlocutores contou o que.

 

Concebo que os mitos fazem parte da memória coletiva do candomblé, e, portanto, não possuem autoria pessoal.

 

Para um leitor mais curioso sobre como os mitos se expressaram nos relatos pessoais, remeto a Rios (1997) [...]

 

Como vemos, este mito sobre uma suposta relação homossexual entre Oxossi e Logunedé não tem nenhuma base científica, não há informantes, e nenhuma casa foi citada como base para a coleta do mito.


O argumento de tratar-se memória coletiva não é embasamento para tal procedimento. Em algum local este mito foi ouvido, e este local deveria ser citado, para que o trabalho pudesse ter o mínimo de legitimidade. 


Rios informa que os detalhes da pesquisa estariam na dissertação de mestrado, que tem o mesmo nome do artigo, mas não conseguimos localizar até o momento.

 

CONSIDERAÇÃO FINAIS 

 

Diante do exposto entendemos que estes mitos devem ser desconsiderados por não apresentarem por parte dos autores um informante ou local confiável para credibilizar a pesquisa de um tema polêmico como esse, conforme recomenda Vansina. 


Um artigo acadêmico que informa apenas ser uma “pesquisa de campo”, é, no mínimo, uma afronta à inteligência. 


Neste momento lembramos a fala do professor Roberto Motta, antropólogo, professor doutor da Universidade Federal de Pernambuco, que escreve na apresentação do livro de Anilson Lins, Xangô de Pernambuco, Editora Pallas, a seguinte crítica aos próprios acadêmicos, embora seja um. Vejamos:

   

 […] O primeiro destes méritos é a fidelidade ao vivido. Ao vivido, quero dizer, àquilo que as pessoas fazem, à sua realidade material e cotidiana, em contraposição ao que vem infelizmente sendo tão comum na produção antropológica, isto é, a atitude diametralmente oposta que consiste em confinar-se o antropólogo a uma espécie de gueto, em que os pesquisadores – se ainda pesquisadores – tratam seus próprios modelos ou daquilo que querem impor à realidade.  

 

Deixam de ser cientistas e abandonam-se a elucubrações, não a respeito do que as coisas são, mas sobre como deveriam ser para corresponderem às utopias de que se fazem muitas vezes representantes. Utopias que envolvem uma tentativa de domínio, uma reivindicação de poder.

 

Em nome do relativismo cultural e da igualdade entre os povos, antropólogos, sociólogos e assemelhados, estão é ferozmente tratando de impor à realidade o único modelo de história que consideram válido, com origens no ideário do período que tenho chamado período intramural[2] […].

 

ANEXOS


















[1] Publicado primeiramente blog Ile Axé Nagô Kóbi em novembro de 2017. Acesso em 22/08/2021:

https://iledeobokun.blogspot.com/mitos-afrobrasileiros-sobre-orixa-lgbt.html

 

[2] “Intramural” refere ao que acontece internamente, termo geralmente empregado na área médica para designar tumores internos.

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