sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Os Nàgó e a Morte

um estudo das fontes

Luiz L. Marins
03/09/2012

INTRODUÇÃO


O objetivo deste texto é fazer um demonstrativo das fontes que foram utilizadas no livro Os Nàgó e a Morte. Mostraremos ao final, a quantidade e o percentual destas destas contribuições no computo geral de todo o corpo de texto.

A etnografia religiosa afro-brasileira, sem dúvida, pode ser classificada como “antes e depois” do livro Os Nàgó e a Morte, de Juana Elbein dos Santos, publicado em 1976 pela editora Vozes, RJ. O livro é um resumo de sua tese para obtenção do doutorado em etnologia apresentada na Universidade de Sorbonne, em 1972, traduzido pelo CEAO/UFBA, como consta em sua ficha catalográfica.

Claro que houveram bons trabalhos antes e depois dele, não só em língua portuguesa, como em outras línguas, mas este tornou-se um marco, evidenciando a diferença entre o pesquisador “desde fora”, que não interpreta, pois não tem o conhecimento iniciático, portanto não faz teologia, e o pesquisador “desde dentro”, que busca interpretar os símbolos religiosos. Enquanto o primeiro apenas registra o que vê, o segundo interpreta, e na maioria das vezes, reinterpreta, terminando por fazer (e refazer) a teologia, influenciando a diáspora, como ocorreu com o conceito de “Bara do Corpo”, que embora entre os iorubá não exista como conceito de Noção de Pessoa[1], tornou-se fundamento nos candomblés do Brasil. A condição “desde dentro” da autora, é fruto de sua iniciação no candomblé, nos anos 60, no Ilê Axé Opô Afonjá, Salvador.

Na introdução do livro, a autora deixa claro e transparente o objetivo do seu trabalho, do qual faremos um resumo. (A fala da autora está em fonte diferenciada):



[...] Propomo-nos, no presente trabalho, examinar e desenvolver algumas interpretações sobre a concepção da morte […] É nos difícil deixar de assinalar as dificuldades inerentes ao estudo, à localização e à seleção do material africano [pois] são fundamentalmente os textos oraculares de Ifá que esclarecem a maior parte da tradição e da liturgia Nàgô no Brasil […] o presente ensaio tem por centro a descrição e a interpretação dos elementos e dos ritos associados à morte [e] o fato de nos estendermos mais sobre a significação de Èsú, não deve ser interpretado como uma supervalorização deste último em detrimento dos Òrìsá [e foi] concebido em três fases: a) uma série de capítulos preliminares sobre a origem dos Nàgô brasileiros […] b) uma série de capítulos sobre as entidades sobrenaturais e os ritos diretamente associados à morte […] c) dois capítulos, enfim, sobre os ritos precedentes e a concepção da morte nas comunidades Nàgô.”

[...] A convivência, passiva como observadora no começo, e ativa à medida que se foi desenvolvendo progressivamente a rede de relações interpessoais e minha consequente localização no grupo, foi-me iniciando no conhecimento “desde dentro”, obrigando-me a agilizar, revisar, modificar , às vezes, rejeitar, mesmo inteiramente, teorias e métodos inaplicáveis ou desprovidos de eficácia, para a compreensão consciente e objetiva dos fatos. Isto nos leva a defrontar-nos com dois problemas: 1) como ver, e 2) como interpretar [...]”.

[...] Em todo caso, o presente estudo pretende ver e elaborar - desde dentro para fora - . Nossa pesquisa está orientada de maneira a focalizar três níveis:

a) o nível fatual
b) o da revisão crítica
c) o da interpretação

A) O nível fatual inclui os componentes da realidade empírica [pois] ignorar aquilo que é pronunciado no decorrer de um rito é o mesmo que amputar um de seus elementos constitutivos mais importantes, [por isso] vemos na coletânea e na transcrição dos textos orais uma tarefa das mais urgentes e apaixonantes […].

B) A revisão crítica foi uma das imposições prementes que se me apresentaram no decorrer da pesquisa. Ela conduz à revisão de alguns conceitos e descrições que uma pesquisa mais apurada permite hoje contestar […]. No nível da revisão, impõe-se a necessidade urgente de rever a tradução que eu qualificaria de criminosa, de certas palavras. Criminosa porque ela atenta contra a própria estrutura e compreensão do sistema [e] torna-se desnecessário precisar à vasta bibliografia existente [porém] com poucas exceções, sinto-me inclinada a qualificar a bibliografia afro-brasileira como ultrapassada […].

C) É neste nível que se elabora a perspectiva - desde dentro para fora - , isto é, a análise da natureza e do significado do material fatual, recolocando os elementos num contexto dinâmico, descobrindo a simbologia subjacente, reconstituindo a trama dos signos em função de suas inter-relações internas e de suas relações com o mundo exterior. Além desta distinção, parece-me importante introduzir uma outra como instrumento de trabalho: a equação simbólica e a representação simbólica […]. Enquanto a representação simbólica é uma substituição primária, a representação simbólica constitui o criptosimbolo, isto é, uma elaboração complexa, madura, cuja natureza e função são essenciais para a compreensão do sistema [...].



Como vimos, a autora esclarece com muita propriedade, que o trabalho de sua tese visa, nos três níveis de estudo a que se refere, reinterpretar os elementos simbólicos da religião Nàgó, que sobreviveram, deram forma e conteúdo às religiões afro-brasileiras, partindo do “desde dentro para fora” sob uma nova visão conceitual, a partir da interação dos três níveis de trabalho.

Não obstante, este trabalho de reinterpretação dos símbolos e rituais, pode ser visto como uma construção (ou reconstrução) teológica, que termina por inserir ou retirar conceitos na diáspora ritual religiosa. O caminhar da antropologia e da teologia são muito próximos, para não dizer que se cruzam. Sobre isso, Silva (2010, pg. 281) escreve:


A atribuição da sacralidade dos textos religiosos é comum em quase todas as religiões que tem história e doutrinas escritas. No caso das religiões afro-brasileiras, a ausência de textos doutrinários sobre o culto faz com que as etnografias acabem desempenhando um papel teológico ao construir narrativas que se tornam referências para uma tradição conservada geralmente por transmissão oral […]. Nas avaliações que nós, antropólogos fazemos de nossos textos etnográficos, o tráfego entre as fronteiras da teologia e da antropologia é visto como decorrente dos objetivos que cada pesquisador atribui ao seu trabalho […].


Dos textos transcritos acima, duas frases da autora chamaram-nos particularmente a atenção. A primeira, “são fundamentalmente os textos oraculares de Ifá que esclarecem a maior parte da tradição e da liturgia Nàgô no Brasil”, e a segunda, “sinto-me inclinada a qualificar a bibliografia afro-brasileira como ultrapassada”.

Estas frases, curtas no tamanho, mas enormes no significado, aguçaram-nos a curiosidade de procurar no corpo da tese as fontes utilizadas para a mitologia, pois segundo a autora, são os textos mitológicos que esclarecem a tradição, e informa que a sua busca na África foi difícil. É um estudo sobre estas fontes que nos interessa, e que gerou este artigo, e são estas fontes que vamos ver agora.

AS FONTES

Interessou-nos apenas as fontes que contribuíram para embasar os conceitos da tese, na esfera da mitologia. Outros autores citados mas que não forneceram nenhum material nesse sentido, foram excluídos da nossa pesquisa. A partir deste critério, identificamos 24 mitos que julgamos mais importantes, e que serviram de base.
De fato, como anunciou a autora em sua introdução, nenhuma fonte afro-brasileira foi utilizada, exceto a tradição oral da própria casa de nàgó que foi iniciada nos anos 60, o Ilê Axé Opô Afonjá, em Salvador, o que confirma a qualificação dada pela autora à bibliografia afro-brasileira como ultrapassada. Vale lembrar que nesta época Verger ainda não havia sido editado em português.
A tabela abaixo apresenta a página do livro em que o mito aparece, o nome do mito, e a fonte ou o informante de onde foi colhido.[2]




TABELA 1
PÁGINA MITO FONTE
55 Separação do òrun-ayé Não informada
59 Nascimento de Òrìsànlá
David Agboola Adeniji, Iwo.
59 Nascimento de Èsù Yangi David Agboola Adeniji, Iwo.
61 Criação do ayé Não informada
64 Acordo entre Obàtálá e Odùduwà Não informada
85 História de Òsun Não informada
87 História do ekodide Tradição oral do Ilé Àse Òpó Afònjá
107 Ikú e a criação do ser humano Elbein & Santos, pg. 87, 1971
108 A criação da roupa de Eégún Verger, pg. 200, 1965
112 Como Òrúnmìlà apazígua Ìyàmi Verger, pg. 178, 1965
113 As 7 árvores de Ìyàmi Verger, pg. 196, 1965
121 História dos 9 filhos de Oya Não informada
123 História de Oya e a sociedade Egúngún Tradição oral do Ilé Àse Òpó Afònjá
131 Conceitos do Èsù “bara do corpo” Elbein & Santos, pg. 7, 1971 A
132 Conceitos do Èsù como Òdàrà Elbein & Santos, pg. 91, 1971 A [3]
135 Conceitos de nascimento de Èsù Yangí Elbein & Santos, pg. 31, 1971 A
149 História de Òsé'túrá, a 17ª pessoa de Ifá Não informada
176 História de como Èsù se tornou Asiwájú Não informada
185 Oríkì de Èsù Iná Babalaô Serifá de Kétu
198 Extrato de um lésé-lésé[4] sobre ÈsùÒjíse'bo Babalaô Serifá de Kétu
205 Ìtàn Ìpònrí Elbein & Santos, pg. 51, 1971 B [5]
214 História de Elégbaa Maupoil, pg. 75, 1943
216 Oríkì de Orí Abimbola, 81, 1971
217 História de Orí Apéré Não informada

um estudo das fontes




Tabela 2
FONTE INFORMADA
QUANTIDADE UTILIZADA IMPORTANTE PARA A TESE?
Babalaô Serifá de Ketu
Bernard Maupoil
David Agboola Adeniji
Elbein & Santos
Não informada
Pierre Verger
Tradição Ilé Àse Òpó AfònjáWande Abimbola
2
1
2
5
8
3
2
1
Não
Não
Sim
Sim
Sim
Sim
Não
Não




Tabela 3
AUTOR %
Abimbola 4,1
David Adeniji 8,2
Elbein & Santos 20,8
Maupoil 4,1
Não informada 33,3

Babalaô Serifá 8,2
Pierre Verger 12,5
Tradição Oral Afonjá 8,2




CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dos 24 textos selecionados, chegamos ao entendimento que aproximadamente 50% do embasamento da tese, parte das reinterpretações da própria autora, conforme mostram as tabelas.
Vimos que a tabela 2 mostra a quantidade de dados informados por cada fonte, e sua importância, e a tabela 3 mostra o percentual relativo aos autores.
Quase como uma conclusão, fechamos este trabalho com um extrato da fala do professor Reginaldo Prandi, Titular da Cadeira de Sociologia da U.S.P. :


“[...] Juana dos Santos, em Os nagô e a morte (1976), parte de uma base empírica oferecida por suas pesquisas no Brasil e na África, e com uma reinterpretação apoiada na etnografia, cria, no papel, uma religião que não se pode encontrar nem no Brasil nem na África, propondo para cada dimensão ritual da religião que ela reconstitui significados que procuram dar às partes o sentido de um todo, dando-se à religião uma forma acabada que ela não tem.”  (Prandi, 1997, p. 30-31) [o negrito é nosso].






 
BIBLIOGRAFIA

ABIMBOLA, Wande. “The Yoruba Concept of Human Personality”. In: La Notion de Personne em Afrique Noire, Paris, Centre National de La Recherche Scientifique, 1971.
ELBEIN, Juana & SANTOS, Deoscoredes. Èsù Bara Láróyè, a comparative study, Ibadan, Institute of African Studies, University of Ibadan, Nigeria, 1971 A.
…...................................................................... “Èsù Bara, principle of individual life in the nàgó system”. In: La Notion de Personne em Afrique Noire, Paris, Centre National de La Recherche Scientifique, 1971 B.
MAUPOIL, Bernard. La Géomancie à l'ancienne Côte des Esclaves, Paris, Institut D'Ethnologie Musée de L'Homme, 1943.
SILVA, Vagner G. “Segredos do Escrever e o Escrever dos Segrêdos”. In: Barretti Filho, Aulo (org.). Dos Yoruba ao Candomblé Kétu, São Paulo, Edusp, 2010.
VERGER, Pierre. “Grandeur et Décadence du Culte de Ìyámi Òsòròngà”. In: Journal de la Societe des Africanistes, 35 (1), 141-243, Paris, Centre National de La Recherche Scientifique, 1965.




CULTURA IORUBÁ
http://culturayoruba.wordpress.com


[1]   Sobre Noção de Pessoa Iorubá, visite: http://culturayoruba.wordpress.com
[2]   Quando o mito não trazia um título próprio, inserimos um nome, para fins de catálogo.
[3] Informante: Babalaô Ifatoogun de Ilobu.
[4] Um poema; literalmente, uma relação de ese (verso).
[5] Informante: Babalaô Ifatoogun de Ilobu

8 comentários:

  1. Luis,

    Interessantes, mas, não deveria haver uma conclusão? Onde você quer chegar? O que interpreta?

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  2. Caro marcos,

    Eu acredito que o conteúdo ficou conclusivo, não seria preciso assinalar todos os caminhos quando estamos lidando com intelectuais, eu li e entendi tudo aquilo que o Luiz descreve, eu mesmo já vinha falando sobre o assunto, o livro é o que o Luiz realmente apresenta.

    Pena que muita gente segue este livro como uma bíblia, quando na verdade ele demonstra um certo conflito entre a realidade e a verdade exclusiva da autora.

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  3. Axé Marcos,

    Esta é a cobrança de todos.

    Entretanto, quero que o povo de santo pense e conclua por si, sobre o livro que adotou como bíblia do candomblé.

    Ilera!

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  4. erik,

    Não sei, entendo sugestões ou indicações mas acho que se a gente entra na chuva é para se molhar.

    Luiz,

    Eu nunca tinha visto essa referencia doa nago com a biblia do candomblé, eu observo algumas pessoas citarem como um aspecto extremo de erudição delas (que sabem citar que o livro existe), mas acho que poucas delas leram até o fim e entenderam.

    Eu já havia observado essa questão de fontes, bem vagamente, porque não justamente achado de onde ela se referenciou, o trabalho que fez esta muito bom, como deve ser feito.

    Eu sempre digo que sou um dos que gostam do livro dela. Tenho minhas próprias críticas mas sem dúvida ela ousou além de reportar também inferir, analisar e concluir e nisso ela criou conceitos. Acho que isso aborreceu muita gente. o fato de ela ter pensado e formulado seus conceitos e conclusões.

    considerando a época que foi feito acho que esse livro junto com o duplo e a metamorfose foram obras importantes, para quem os leu, é claro.

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  5. Marcos,

    Eu admiro a inteligência dela, pois soube "plantar a sua base" no exterior, para explorar a carência de informações dos brasileiros da época (1975), que abraçaram sua tese sem questionar, até porque, não tinham o menor embasamento para tal. Fosse hoje, ela não conseguiria.

    Mas, apesar dos conceitos questionáveis na área de Noção de Pessoa, o livro tem o seu valor histórico e documental.

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  6. Como complemento, sugiro a leitura do trabalho de Verger, onde ele expṍe sua opinião sobre este livro:

    http://iledeobokum.blogspot.com/2009/01/etnografia-religiosa-iorub-e-probidade.html

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  7. Eu li quase tudo de Verger.
    Quando digo quase tudo, é quase tudo mesmo.
    Li a obra da Juana.
    Acho, de certa forma, injusta a crítica do Verger sobre a obra da autora.
    Picuinhas de acadêmicos, que só fizeram diminuir nossa cultura afro.
    Analisar a tesa da outra, depois que uma banca de doutores a analisou e a aprovou, parece-me antiético.
    O trabalho dela têm falhas, sem dúvida. A começar que a proposta é analisar a morte sob o enfoque da cultura yorubá, e a autora consome 80% do escrito tratando de Esu e Ifá.
    Sobrou pouco para tratar da morte.
    Falta ainda tratar da reencarnação, da concepção yorubá da atunwà.
    Esse seria o ponto X, o principal da tese, e a autora não chega lá.
    Falta explicar, o caráter multifacetado do ser, depois da iniciação.
    Pois se assenta o egum e se libera parte da essência pra reencarnar, certo é que esse povo (o yorubá) tem uma complexa concepção da formação do ser, que trancende corpo e espírito.
    Ou corpo - perispírito - espírito (para os kardecistas).
    Verger aborda um pouco essa concepção no livro Culto aos Nagos e Voduns, Editora Edusp.
    Uma vez que a pessoa se inicia, ela passa a ter, além do corpo, do espírito (emi), do perispírito, uma quarta essência, que é uma amálgama, daquilo que ela é + a energia do orixá. Esta essência pode ser assentada.
    Com ou sem prejuízo do rompimento do ciclo reencarnatório?
    Era esta a questão chave a ser tratada na tese, para que ela fosse mesmo, valiosíssima, e não apenas valiosa.
    É o que penso.

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  8. Considerações ponderadas do André. Lúcidas.O fato de ela ter se apoiado em suas próprias observações e também de não poder citar fontes, pelas mais diversas razões ou impedimentos, não desmerece seu trabalho. Já o fato de criar religião que não existe é gravíssimo. Vou retomar o livro com um olhar mais crítico e volto.

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TIKTOK ERICK WOLFF

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