Por Rodrigo Cassano
Postado em 16/11/2021 acessado em 28/07/2022 às 20:21hrs
A Umbanda que eu conheci desde pequenino foi a Umbanda dos povos de Congo, Angola, Cabinda, Lunda, Moçambique etc. A história da Umbanda que eu, minha família de santo e todos os nossos antepassados conheceram aconteceu na encruzilhada, foi construída nos cruzos e pertence ao povo que a edificou. A minha Umbanda é a Umbanda do boêmio, cria do samba, nata da malandragem carioca, jongueiro, amante do partido alto e homem preto conhecido por nós como Exu Toquinho da Guiné. A minha Umbanda é a Umbanda de Vovó Cambinda que, manifestada no corpo de uma mulher preta chamada Eunice, salvou a vida de um bebê que sufocava com seu próprio catarro. A minha Umbanda é a Umbanda do Caboclo Arranca Toco que se identificava como filho de uma mulher indígena com um homem africano e que fazia a laranja doce amargar. A minha Umbanda é a Umbanda da Pomba-gira da encruza que sarou uma ferida grave na perna de uma pessoa acidentada utilizando apenas charuto, cachaça e bife.
A história que conheço tem inicio antes do século XIX e tem seu auge de desenvolvimento acontecendo na Pequena África, onde nomes como Luzia Pinta, Assumano Henrique Mina do Brasil, Tia Ciata, Juca Rosa, Pai Gavião, Tia Chica do Vavá, Henriqueta da Praia, João Alabá, Cipriano Abedé, Benedito Espírito-Mau e outros tantos makumbeiros serão retratados como feiticeiros, praticantes de baixo-espiritismo, adeptos da magia negra, álcoolatras, malandrões, charlatões, aproveitadores de senhoras, etc. Corpos e existências que foram apagados da história oficial ou oficiosa — já que esse processo de invisibilização ocorre simultaneamente ao embranquecimento social que foi imposto pelo movimento de eugenia que visava simplesmente exterminar a população preta e toda a memória coletiva africana.
A região do centro do Rio de Janeiro conhecida como Pequena África é um terreno fértil para os intercâmbios culturais que possibilitaram a grande amálgama que são alguns sistemas espirituais afro-diaspóricos.
O Samba é parido paralelamente a construção da história das Makumbas, da Umbanda, do Omolokô e de todas as práticas espirituais de base centro-africana que, hoje, seríamos incapazes de nomear. É impossível falarmos dessa parte ignorada da história da Umbanda sem falarmos do Samba e de África.
Recentemente, eu li algo que me trouxe um enorme desconforto: "Deixem que a ciência e a academia decidam sobre a história da Umbanda". Essa frase tem ecoando na minha cabeça há alguns dias e eu não consegui digerir o conteúdo dessa fala. Para algumas pessoas, essa pequena frase poderia soar como um simples apelo da ciência implorando para contar a verdade ao povo, mas o objetivo aqui foi estratégico. Há mais ou menos 113 anos está em curso um projeto epistemicida que se organiza atropelando memórias, práticas, saberes, corpos, ritos, hábitos, modos de viver, elementos ritualísticos, crenças, cosmogonias, divindades, identidades, pertenças e os nomes dos nossos ancestrais.
Um ditado Yoruba diz que "Um rio que esquece a sua fonte, seca". Ou seja, os ancestrais veneráveis e heróis civilizatórios que constituem a nossa história precisam ser lembrados dentro das nossas comunidades de terreiros e devem ocupar espaço de prestígio em nossos cultos, porque a Umbanda é um território de culto aos espíritos daqueles que retornaram para Mpemba através da Kalunga. Somos, porque todos eles foram antes de nós.
Enquanto um homem branco e um Padre Jesuíta protagonizam a história da Umbanda, pessoas como Tata Tancredo da Silva, Orlandino Cobra Coral, Maria Batayo, Chica Boi, João Gambá, Vovó Maria Joana, Tia Maria, Tia Benedita, Tia Fé, Mano Eloy, Zé Espinguela, Tia Tomásia, Mãe Mosinha de Oxum, Tata Cai N'Água, Mãe Maria Coral, Seo Júlio do Exu Cemimba, Tia Chica da Mocidade, Seo Nicanor do Caboclo Cuguruçu e tantas outras que ficaram esquecidas nas prateleiras das bibliotecas, nos documentos empoeirados, nos álbuns das famílias convertidas ao neo-pentecostalismo que foram jogados no lixo, nos registros policiais, nos jornais e revistas da época, etc.
A história pertence ao povo e o povo precisa ter o direito democrático de contar sua própria história para que personagens históricos sejam celebrados e honrados. O mito de fundação e o congresso racista de Umbanda funcionaram como ferramentas de aniquilamento de tudo aquilo que é preto, popular e africano. É como se jogassem uma capa de invisibilidade sobre a história e impedissem que enxergássemos o passado com transparência. É como se tivessem tentado sepultar a história com uma pedra imensa.
Apesar disso, todos aqueles que vieram antes de nós agiram de forma estratégica e conseguiram preservar vestígios fundamentais de suas histórias, vivências e práticas. Sabendo disso, é importante que façamos o exercício de olhar para trás para aprender com os nossos antepassados, reconstruir os nossos espaços, fortalecer as nossas alianças e garantir que as futuras gerações possam acessar as informações, os conteúdos e as sabenças que tem sido negados ao povo até os dias de hoje.
Essa disputa pela narrativa tem esgotado e adoecido nosso povo há décadas. A reivindicação pelo nosso espaço de direito na linha do tempo da Umbanda é mais do que legítima... É essencial. Por isso, precisamos investir em democratizar o conhecimento para que outras pessoas possam acessar a informação e se libertar da escravização mental e espiritual impostas por esses sucessivos projetos de colonização.
Da mesma forma que, até bem pouco tempo, eu não conhecia os detalhes sobre o mito, eu também desconhecia os nomes e a histórias dos que me antecederam. Ter a chance de olhar para trás me possibilitou a oportunidade de poder reconstruir uma relação com os personagens que teceram esse legado cultural, espiritual e politico em que estou inserido. Portanto, a ideia é olharmos para além da linha do mar e partirmos em busca dos rastros que nos foram deixados para que possamos nos reencontrar com a versão mais honesta da história. Saibam que continuaremos ouvindo falar sobre o mito, porque mitos ainda emplacam no Brasil... "Com tanto pau no mato, a Embaúba é coronel..."
Pemba de Angola para fora! Pemba Branca para dentro!
Fundanga para queimar a língua do falador!
Água fresca para agradecer a terra e pedir que os nossos passos firmes nos levem por caminhos sempre abertos!
E, lembremos: A Lemúria não existe e Umbanda é uma palavra de origem Bakongo.
Foto da Capa do Jornal "Diário Carioca" do ano de 1941 anunciando mais uma investida contra os "makumbeiros" dessa enorme cruzada que enfrentamos há séculos. "Coincidentemente", o fato ocorre no mesmo justamente no ano do Primeiro Congresso de Umbanda. Quantos dos nossos antepassados não foram presos, perseguidos e proibidos de praticar suas religiosidades? Quantos não tiveram sua espiritualidade criminalizada e demonizada?
Imagens comprobatórias
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