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segunda-feira, 21 de setembro de 2020

NKISI É ORIXÁ?

Márcio Brito Neto
21/09/2020

 




Doutorando em Cinema e Audiovisual (UFF). Pesquisa sobre cinema negro, identidade e representação étnico-racial e visibilidade social de populações vulneráveis. É Mestre em Comunicação (PUC-Rio), com ênfase em Representação Social. 

 

Quero compartilhar com vocês, principalmente meus irmãos do candomblé e da umbanda uma pequena resenha (grande para Facebook), sobre o complexo tema "Nkisi é ou não é Orixá?" Fica aí uma longa reflexão maturada após muita pesquisa e noites de pensamentos. Que resultou no projeto de longa-metragem documental "Munzenza: O brado do tempo". Aproveito pra agradecer meu pai Tata Sajemi Ia Lemba pela paciência e tantas trocas. 



Nkisi é Orixá?


Demorei muitos anos para escrever este texto, talvez pelo fato de ter escolhido o Cinema como expressão sobre a religiosidade afro-brasileira, a partir da perspectiva de dentro dos cultos afro-bantu-indígenas, chamado de candomblé Angola-Congo. 

Quero com este texto ajudar aos irmãos mais novos e também a alguns mais velhos que julgam que nada mais têm para aprender, bem como aos resistentes em tentar compreender a própria religião, pois se hoje temos acesso à informação que nossos antepassados não tinham, que a usemos para não perpetuar o histórico de apagamentos que atingiu a população negra no Brasil, onde os alvos que foram mais massacrados por esta lógica foram os nossos antepassados que vieram da África subsaariana ou o antigo reino do Kongo, chamados de negros bantu. 

Não busco aqui impor uma verdade, mas apresentar dados que sustentam minha argumentação, que não é minha em si, mas nossa, amparada por conversas, vivências e métodos de pesquisa.

Ao leitor que não é do candomblé, farei uma breve explicação superficial sobre como o candomblé se divide. 

Aqui no Brasil desembarcaram negros de diversas etnias trazidos de reinos diversos da África, com culturas e crenças próprias, cosmovisões e teologias distintas. 

Primeiro desembarcaram os negros bantu, como já expliquei de onde vieram; posteriormente, aproximadamente 200 anos depois, chegaram os povos falantes do yorubá, conhecidos como “nagôs” e por último cerca de meio-século depois, os africanos escravizados de origem sudanesa, os jejes, falantes do fon, ashanti e outros idiomas nativos. 

De cada grupo populacional surgiu uma linhagem que compõe o candomblé, ou candomblés, sendo Angola-Congo, dos bantu; Ketu, dos “nagôs” da Nigéria e Benin; e Jeje, dos Mahim ou daomeanos, da região onde hoje encontra-se o Sudão/Etiópia e outros.

Cada linhagem traz consigo cosmovisões próprias, culturas, línguas e crenças também singulares, apesar de muitos pesquisadores equivocados, como o racista Nina Rodrigues, terem dito e escrito que o candomblé é o culto aos Orixás, assim se perpetuou e até hoje há quem acredite nestas afirmações. Nina Rodrigues chegou a dizer que os bantu não tinham uma religião. 

Uma mentira contada muitas vezes e referendada pelo aporte acadêmico torna-se uma “verdade” e se cristaliza no imaginário social, inclusive dentro da própria religião. 

O apagamento histórico que sofreu os povos bantu, que eram destinados para as áreas rurais, pela força física e pela “pouca beleza”, não tinham acesso às Casas Grande, bem como não compartilhavam com os brancos nenhuma informação da sua fé nos ancestrais e na figura de Nzambi Mpungu.


Hoje, muitos adeptos compram e propagam o discurso de que Nkisi e Orixá tratam-se da mesma “coisa”, ou da mesma “divindade”. Há aí um certo paradigma que é preciso desconstruir, mas para isso precisamos entender. 

Categoricamente, posso afirmar que NÃO, Nkisi não é Orixá e Orixá NÃO é Nkisi. Mas como posso ser tão assertivo? Vejamos o caminho lógico para tal informação, balizado por muitas leituras e conversas com angolanos e congoleses.

Muitos adeptos do candomblé têm imensa dificuldade em concordar que Nkisi NÃO é Orixá.

 

Escrevo este texto, não com base em achismo ou crença pessoal, nem porque "aprendi assim, assim que é", menos ainda porque "ouvi dizer". Escrevo a partir de um método rigoroso de pesquisa que cruza dados quantitativos e qualitativos, para compreender o campo religioso do candomblé, a partir de um longo levantamento bibliográfico, histórico, oral e uma diversidade de fontes aliadas com a vivência nos terreiros. Pois bem, dito isto vamos para questão central. Nkisi e orixá são a mesma "coisa"?

Tal perspectiva apaixonada dos adeptos não se sustenta se olharmos 3 pilares que diferenciam o culto a Nkisi do culto aos Orixás - aqui não farei nenhum juízo valorativo, tampouco de hierarquia, mas apontar as diferenças. São esses pilares: teologia, cosmovisão e historicidade.

Do ponto de vista teológico é impossível afirmar que Nkisi e Orixá são as mesmas “divindades”, vamos usar o objeto da Teologia, a relação do humano com “Deus”.

 

O elemento criador do universo e dos humanos para os bantu é Nzambi Mpungu, ou Kalunga (a depender da região e da etnia sofre variações no nome, mas a crença é similar); já para os nagôs é Olodumaré (ou Olorun). Precipitadamente, alguns se apressam para dizer que Nzambi é análogo a Olodumaré, eis o primeiro equívoco sincrético inter-religioso.

 

Quem ou o que é Nzambi Mpungu?


Primeiro, os povos bantu - não digo na modernidade, digo os mais antigos da era tribal, bem como os indígenas brasileiros - não acreditavam em um “ser supremo”, destacado dos humanos e das coisas do mundo.

Nzambi Mpungu é considerado a união das energias do mundo. A força geradora de tudo que existe e que move todos os seres viventes.

 

Nzambi habita cada elemento da Natureza e por ela também é formado. Não há nada no mundo que não tenha a presença de Nzambi Mpungu como energia que move e que é animada por ele.

 

Nzambi, antes da definição do colonizador europeu, que o assimilou ao Deus cristão e o descaracterizou, não significa “Deus poderoso”, “supremo”, mas “ser vivente”. Ou seja, tudo que vive contém Nzambi e Nzambi contém tudo que vive.


É preciso fazer uma distinção na palavra “viver”, que para os bantu não é estar vivo no plano material, mas existir no mundo, pois vida e morte coabitam no mesmo mundo – falarei disso adiante.

Nzambi não foi o criador do universo, mas a sua força geradora, através dele as forças naturais se autocriaram, como no Big-Bang. Não há nesta figura nenhuma aproximação com o humano, com seus sentimentos e personalidades.


Nzambi não encontra uma forma, logo é amorfo, tampouco é um delegador de poderes, pois ele é O Poder e todos dele que provém também são O Poder.

Nzambi está dentro de nós, não fora de nós. Isso faz com que se aceite a Natureza também como divindade, pois se ela é Nzambi, ela também é “Deus”, logo teologicamente os bantu são henoteístas.


Dito isto, e Olôdumare?

Esta figura nagô é mais assimilada ao “Deus” cristão, todavia é preciso cautela antes de dizer que é a mesma “coisa”, pois é impossível conceber Olôdumarepela ótica cristã e ocidental.

 

Olôdumare criou o mundo e se afastou da criação se recolhendo no Orun, onde habitam os mortos notáveis e as divindades, seria equivalente (mas diferente) do céu cristão.


Olôdumare deixou na Terra humanos, delegando a eles poderes para regerem (ou zelarem) pelos elementos da Natureza, assim com características humanas, tanto em forma como em personalidade, considerados os nossos primeiros ancestrais, que ao se desligarem deste plano foram alçados ao grau de ancestrais divinizados, para viverem no Orun, mas também junto aos elementos da Natureza, o que não quer dizer que eles sejam a Natureza. Essas figuras ancestrais são veneradas até hoje nas terras da Nigéria, Benin, e demais países falantes do Yorubá.

Logo, os nagôs são teologicamente politeístas, apesar da figura de um “Deus supremo”, acreditam que há outros deuses capazes de intermediar a relação dos humanos vivos e/ou mortos com Olôdumare, inacessível aos humanos.


Diante desta diferença teológica, vamos ao segundo ponto: cosmovisão, pois estão entrelaçados.

Se Nzambi está entre nós, então não existem dois mundos para os bantu?

A resposta é NÃO.

 

Existe um único espaço coabitado por seres materializados (vivos) que trazem em si a energia vital de Nzambi, mas também os “mortos” habitam esse mesmo espaço, o que há é uma divisão energética, imaginária entre esses mundos, porém não há céu e terra, não há um espaço onde habita Deus e as divindades destacadas dos humanos.


Quando morremos, nos tornamos antepassados, que podemos ser venerados e lembrados pelos seres “viventes”, permanecemos “vivos” como energia e podemos auxiliar os “viventes” na sua passagem pela “vida”. A depender do papel social que desenvolvemos e da relação harmoniosa que tivemos com o mundo (dos vivos/mortos), podemos após muitos e muitos anos sem “viver” (materialmente) nos tornar ancestrais que regressam à energia da Natureza (opa, não parece algo que ocorreu com os primeiros ancestrais nagôs?).

Nós acessamos “Deus” (Nzambi) muito facilmente através de reequilíbrio energético, onde estas energias que são a própria Natureza é que nos ligam uns aos outros e a Nzambi, daí surge a filosofia do Ubuntu, “eu sou porque nós somos”. Todos os elementos do mundo estão interligados, não há distinção entre Deus/Natureza/ humano/animais, pois nos humanos e em seres animados e inanimados habita água, fogo, ar, terra, materiais químicos que também são Natureza.

Pois bem, uma vez que o ser humano ao “morrer” vira antepassado e a depender da circunstância torna-se ancestral divinizado, não estaria esta figura muito próxima aos Orixás nagôs? ... A reposta é sim.

 

Mas estas figuras “mortas” que se tornam ancestrais são os Jinkisi (plural de Nkisi)? A resposta é NÃO!!!

 

Pois o Nkisi seria a própria Natureza, que liga todos os elementos do mundo a energia condensada e mobilizadora chamada Nzambi. 


Nkisi é anterior aos ancestrais, pois é a energia vital de tudo que existe e coabita. 


Nkisi não é diferente de Nzambi, mas é muito diferente de Orixá.


Daí qualquer tentativa de sincretização inter-religiosa corrobora com o apagamento destas filosofias e cosmovisões dos povos bantu. Por isso vou ao terceiro ponto, para que não reste dúvidas: a historicidade. 

Muitos irmãos dizem que o candomblé nasceu misturado. Afirmam categoricamente que Nkisi e Orixá são as mesmas divindades, pois os negros tiveram contato na senzala e por isso partilharam sua fé comum e construíram uma religião. 

Outros vão além e se aventuram a dizer que a mistura se deu já nos navios negreiros. Com o passar do tempo na troca cultural, o candomblé nasceu como um culto basicamente a Orixás no ketu, Nkisi no Angola-Congo e Vodun no Jeje, e que só muda o nome.

Esses são equívocos precedidos de preguiça para uma mirada histórica. Vamos a elas:

a) Os negros bantu desembarcaram no Brasil em 1517, pois já havia colonização portuguesa na África banta, alguns estudos mais ousados apontam desembarque em 1507.

Fato é que os primeiros nagôs a desembarcarem no Brasil datam do século XVIII, ou seja dois séculos de diferença, ou no mínimo 3 gerações. Os bantu tiveram até bisnetos antes da chegada nagô, como pode o culto às divindades africanas no Brasil ter surgido misturada?

 

Se houve mistura foi dos bantu com os indígenas, talvez a primeira grande característica ritualística que separa os cultos bantu dos demais cultos do candomblé. Pois o angola-congo nasce de uma mistura com as crenças indígenas, não com nagôs.


b) É sabido, ou deveria ser, que havia uma separação entre bantu e nagôs. Após a abolição da escravização de indígenas, se acentuou o desembarque nagô, enquanto os bantu foram direcionados para áreas rurais, lavouras e minas, os nagôs por serem “mais bonitos” e “mais inteligentes” - típico do racismo brasileiro que tenta criar apartamento entre negros - eram direcionados para as Casas Grande e para “cidades”, enquanto os bantu permaneciam no campo.

Obviamente, qual culto era mais visível aos brancos?

 

Dos nagôs, certamente, é onde nasce o sincretismo, visto que a cosmovisão e a teologia nagô é mais próxima (não similar) ao cristianismo?

 

É fácil apontar Ogum como São Jorge ou São Sebastião, Yansã como Santa Bárbara, visto que ambos são ancestrais divinizados, guardada as proporções teológicas e cosmovisão, porém tal correlação é impossível com as divindades banta, daí aparentemente surge o sincretismo inter-religioso, movido pelo sincretismo extra religioso com o catolicismo. 


Os bantu para explicarem ao branco o que era Nkisi, precisavam assemelhá-lo ao Orixá, que por sua vez era sincretizado como santo católico. Convenhamos que hoje já não precisamos mais disso.


c) No campo já havia culto a antepassados e às “divindades” Natureza, muito similar ao que acreditavam os indígenas:

“Deus sol” para o bantu é Muilo, 
“Deusa Lua e água doce” é Ndanda Lunda; 
“Deusa mar” é Samba Kalunga, 
“Deus planta” é Katendê e assim por diante. 

Nkisi nesta concepção não tem forma, nem personalidade, nem sentimento humano. É simplesmente a força da Natureza.

Tal concepção partilhada com os nagôs fez criar um sincretismo inter-religioso, pois o mais similar a Ndanda Lunda é Oxum, mas não significa que se trate da mesma “divindade”, segundo os nagôs Oxum viveu, virou antepassada e ancestral que “rege” (zela) as (pelas) águas doces, seria então Oxum zeladora da força da água doce, a “sacerdotisa” ancestral capaz de invocar e intermediar a relação dos humanos com a força Ndanda Lunda? (obviamente isto é só uma provocação para pensarmos, mera ilustração).

 

Não seria nenhum absurdo fazer tal afirmação, mas Ndanda Lunda não é Oxum. E Oxum não é Ndanda Lunda, embora haja uma possível correlação pelo elemento água. Todavia isso nem sempre é possível, uma vez que os bantu tem divindades singulares que não encontram similaridades com Orixás nagô. Como Kitembo.


d) O ritual de morte, conhecido como Ntambi, pode ser visto no interior de Minas Gerais, até os dias atuais, e tal ritual é extremamente similar ao que se passa no candomblé bantu, com corpo presente e demais elementos ritualísticos. 

Logo, não se sustenta a ideia de que foram os bantu que incorporaram elementos nagôs, com o passar do tempo as trocas se tornaram ferramentas de resistência, mas cada um respeitando as suas singularidades. Se houve um hiato de duzentos anos entre bantu e nagôs, é absurdo dizer que não havia culto africano ou até mesmo candomblé antes dos nagôs.

Para não me estender mais, finalizo dizendo que tentei pontuar algumas características teológicas, de cosmovisões e historicidades que diferem a crença bantu da crença nagô. Fazendo isso, acredito que respeito ambas identidades culturais/religiosas, devolvendo aos nagôs a possibilidade de contarem as suas histórias e a nós religiosos bantu o reforço a nossa identidade e filosofias. 

Devemos ser gratos aos antepassados que resistiram e trouxeram nossa tradição banta até hoje, pois esta ideia de que Orixá é Nkisi e vice-versa faz parte de um sistema opressor, violento de apagamento cultural, social e religioso de negros bantu no Brasil.

É preciso muita responsabilidade para expor socialmente dilemas do candomblé. Obviamente num dado momento foi vital para luta negra e da religião que fossemos todos uma coisa só, porém este tempo passou e é necessário, nos dias atuais, que demarquemos nossas identidades, isso não significa separar, mas respeitar a historicidade de cada linhagem, pois ancestral que não é lembrado deixa de existir.

Evitei entrar em pormenores religiosos, que explicam ainda mais as diferenças, mas acredito que tem coisas que só quem é de dentro deveria saber, porém já que muitos “estudiosos” do candomblé de dentro e de fora, tratam este ponto da “não diferença” como uma verdade, achei por bem expor ao menos um pouco uma outra mirada.

 

Argumentos aparentemente bem balizados, podem reforçar paradigmas excludentes e que invisibilizam uma população de terreiro que resiste até hoje para sustentar seus ancestrais bantu.

 

 

Publicado no perfil Facebook de Tata Sajemi la Lemba

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Transcrição: Luiz L. Marins

TIKTOK ERICK WOLFF

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