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quinta-feira, 18 de maio de 2023

BATUQUE: UMA RELIGIÃO AFRO-RIO-GRANDENSE EM OPOSIÇÃO À COSMOVISÃO CRISTÃ. ENTREVISTA ESPECIAL COM NORTON FIGUEIREDO CORRÊA

Esta entrevista foi publicada no site IHU, em 12/01/2010, acessado em 18/05/2023. 

Na entrevista o professor Norton F. Corrêa expressa o seu ponto de vista sobre a origem do Batuque e a religião cristã. A seguir: 




BATUQUE: UMA RELIGIÃO AFRO-RIO-GRANDENSE EM OPOSIÇÃO À COSMOVISÃO CRISTÃ. ENTREVISTA ESPECIAL COM NORTON FIGUEIREDO CORRÊA

Nascido no Rio Grande do Sul, o batuque, religião afro-brasileira de culto aos Orixás, encontrou no solo gaúcho um território receptivo, apesar do racismo e das importância social e política das religiões cristãs, especialmente da Igreja Católica. Sinal disso é que os deuses do batuque recebem polenta ou churrasco como oferendas, além de caldos com erva-mate, e vestem até bombacha.

Mas, para o Prof. Dr. Norton Figueiredo Corrêa, existe por trás disso uma enorme assimetria de poder social e cultural, especialmente entre as religiões cristãs e as afro-brasileiras. Em termos de cosmovisão, por exemplo, ele afirma que, "enquanto a sexualidade é condenada no catolicismo (e no céu também não existe sexo), os deuses afro-brasileiros namoram as deusas". E se o céu católico-cristão parece algo eternamente inerte, as representações referentes aos orixás "mostram-nos em movimento, guerreando, amando".

Nesta entrevista concedida à IHU On-Line, por e-mail, Corrêa defende que justamente os brancos que ocupam as posições de maior poder na sociedade gaúcha é que vão buscar o poder simbólico que creditam aos sacerdotes da comunidade religiosa afro-brasileira. Segundo ele, Borges de Medeiros (1863-1961), presidente do Estado do Rio Grande do Sul por mais de 25 anos, era cliente de um famoso e rico sacerdote africano. Por outro lado, Dom Vicente Scherer (1903-1996), cardeal e ex-arcebispo de Porto Alegre, manteve, por muitos anos, um ataque frontal às religiões afro, hoje manifestado pela Igreja Universal do Reino de Deus.

Norton Figueiredo Corrêa é sociólogo, graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestre em antropologia social pela mesma universidade e doutor em ciências sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Atualmente, é professor adjunto da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e do mestrado interdisciplinar Cultura e Sociedade da mesma universidade. É autor de "O Batuque do Rio Grande do Sul: Antropologia de uma religião afro-rio-grandense" (Ed. Cultura & Arte, 2006), já na sua segunda edição.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são as origens do batuque? Poderia  situá-las?

Norton Figueiredo Corrêa – O batuque provavelmente surgiu em Rio Grande, na segunda metade do século XIX. Um trabalho muito interessante de mestrado, de Jovani Scherer, detectou uma considerável colônia de nagôs na cidade. É possível que uma parte dos negros de origem jêje-nagô tivessem vindo da África, diretamente, e uma parte de outros Estados brasileiros. São extraordinariamente grandes as semelhanças entre o batuque e o xangô pernambucano. Do Rio Grande do Sul, o batuque migrou para o Prata, hoje há muitas casas "de religião", para usar um termo usado por seus integrantes, na ArgentinaUruguai, Paraguai e outros países vizinhos.

IHU On-Line – Quais são as suas peculiaridades e diferenças em relação a outras religiões afro-brasileiras?

Norton Figueiredo Corrêa – Uma das peculiaridades do batuque – mas comum a qualquer religião – é a adaptação ao contexto regional. No caso do batuque, Oxum, a deusa das águas doces, tem como oferenda a polenta, influência da colônia italiana. O Bará, divindade das encruzilhadas e caminhos, recebe batatas inglesas assadas, sendo que a batata, embora americana, foi popularizada pela colônia alemã. A veste ritual masculina é a bombacha e o churrasco é o alimento preferido de Ogum, o deus da guerra e das artes manuais. E os eguns, os espíritos dos mortos, recebem uma espécie de caldo, o mieró de egum, ao qual alguns templos adicionam erva-mate. Mas há diferenças variadas entre o batuque e outras religiões, especialmente as de influência banto, como a umbanda e o candomblé de caboclo baiano.

IHU On-Line – Qual a importância do batuque na construção da sociabilidade e da religiosidade do gaúcho?

Norton Figueiredo Corrêa – Podemos falar na sociabilidade interna à religião e externa a ela. Internamente, entendo que o batuque foi um espaço simbólico criado pelos negros urbanos com a função de praticarem a sociabilidade, de se auto-protegerem contra a repressão da sociedade branca e construírem uma identidade própria, grupal. Com o tempo, os brancos, especialmente das classes baixas, começam a ingressar na religião, e muitos deles, mesmo no passado, assumiram a condição de pais e mães-de-santo e se tornaram muito famosos e respeitados dentro e fora da comunidade. Atualmente, o número de brancos aumentou, inclusive descendentes de italianos e alemães. O que ocorre com eles é que a conversão às religiões afro, mas mais especialmente ao batuque, implica na aquisição de uma visão de mundo muito específica, que se opõe diametralmente à cristã. São brancos na pele, mas negros na cabeça.

"A conversão às religiões afro implica na aquisição de uma visão de mundo muito específica, que se opõe à cristã"

A expressão "sociedade gaúcha" é complicada, porque os religiosos afro-brasileiros pertencem a ela. Se falarmos dos não filiados às religiões afro, a grande influência delas se traduz pelo fato de que os não filiados acreditam firmemente no poder simbólico que elas possuem. Quando falei em espaço criado, trata-se, na verdade, de um espaço negociado entre a comunidade religiosa e a sociedade envolvente. Há dois pontos a considerar. Os brancos ocupam as posições de maior poder na sociedade gaúcha, e esta, em caráter oficial, apenas tolera as religiões afro. Mas são justamente essas pessoas, individualmente, que vão buscar o poder simbólico que creditam aos sacerdotes da comunidade religiosa afro-brasileira.

A classe alta gaúcha e o batuque

Observei tal fenômeno, que é muito recorrente, durante os 20 anos de pesquisa sobre o batuque. Ouvi, de pais e mães-de-santo, descrições muito precisas e detalhadas de escritórios, consultórios, indústrias, lojas e empresas de grande porte, para onde foram levados por seus proprietários para fazerem serviços religiosos. Assinale-se que o detalhamento excedia os locais frequentados pela clientela ou público, estendendo-se, por exemplo, a almoxarifados, salas reservadas etc.

Além disso, muitos dos nomes dos respectivos proprietários eram de pessoas de grande visibilidade na sociedade gaúcha. Diz-se que Borges de Medeiros [(1863-1961), presidente do Estado do Rio Grande do Sul por mais de 25 anos], nos anos 1930, era cliente do Príncipe, um famoso e rico sacerdote africano que veio morar em Porto Alegre. Testemunhas afirmam que ele o atendia – assim como a outros políticos – a portas fechadas, em seu templo. E que teria "sentado" (isto é, entronizado) um Bará, no Palácio Piratini.

O segundo ponto a ser considerado é que é muito difícil que uma família pobre, no Rio Grande do Sul, mesmo branca, que não tenha vários membros iniciados ou frequentadores de religiões afro. Uma grande quantidade de pessoas, além disso, já jogou búzios e sabe quem são seus orixás ou entidades, porque, na visão de mundo batuqueira, cada indivíduo, não importa se iniciado ou não, mesmo os de outros locais do mundo, são filhos espirituais de dois orixás, um que comanda a cabeça, e outro, o corpo.

Repressão católico-cristã

É um fenômeno semelhante ao que ocorre na Bahia, mas com a diferença de que no Rio Grande do Sul não existe, como lá, a enorme badalação (muito para fins turísticos, esclareça-se) que é feita sobre o candomblé e seus orixás. O número de templos afro-gaúchos, estimado em cerca de 30 mil, supera os do Rio de Janeiro e os da Bahia. Outro indicador – a abundância de despachos em rios, cachoeiras, ruas, praias, cemitérios, matas (o que, inclusive, ensejou tentativas de regulamentação através de leis) – é uma característica local, não observável nos outros estados referidos. A presença e pujança das religiões afro-gaúchas é algo extraordinário em se tratando de Brasil. Mas, pode-se perguntar, qual o motivo de tanta vitalidade justamente num Estado considerado o mais branco da Federação? A resposta, na minha opinião, remete para a questão do racismo no Rio Grande do Sul, que é  muito forte, além da grande presença e influência política, social e simbólica da Igreja Católica, que até bem recentemente foi a grande responsável pela repressão a estas religiões.

"Borges de Medeiros era cliente de um famoso e rico sacerdote africano. Ele teria "sentado" (entronizado) um Bará no Palácio Piratini"

Uma figura de muita projeção, como Dom Vicente Scherer [(1903-1996), arcebispo de Porto Alegre entre 1946 e 1981. Em 1969, foi designado cardeal], manteve, por muitos anos, uma coluna jornalística, além de um programa de rádio, nos quais atacava violentamente tais religiões. Atualmente, os ataques partem da [IgrejaUniversal do Reino de Deus (IURD), também uma instituição cristã. Aí voltamos à questão do espaço de sociabilidade que os negros criaram, uma resposta a um ambiente hostil.

Não é demais acrescentar que, de certo modo, a arma simbólica potencial representada pela feitiçaria – ou seja, a possibilidade de manobrar com forças sobrenaturais perigosas, conhecidas apenas pelos integrantes da comunidade religiosa – ocupa um ponto importante nas relações sociais no Rio Grande do Sul: brancos e negros acreditam em tais poderes, mas ambos concordam que são os negros que detêm tais poderes. Ou seja, o feitiço, como possibilidade, atua também como um moderador do poder branco. A questão também se projeta no caso de Exu. Divindade africana dos caminhos e encruzilhadas, foi demonizado pelo cristianismo. Mas o feitiço virou contra o feiticeiro: ao associar os religiosos negros ao "mal", deu-lhes, de bandeja, a condição de serem proprietários deste e, por conseguinte, o poder de manejar com ele. Os muito humanos desejos de vingança, os sentimentos como raiva e ódio impotentes encontram aí um canal de expressão e liberação. Alguém, pergunta-se, pediria a uma divindade cristã que aniquilasse com a amante do marido, por exemplo?

IHU On-Line – E quais são as influências do batuque na culinária, também ritual?

Norton Figueiredo Corrêa – Muito pequenas, porque é algo que permanece no intra-muros dos templos. Um dos poucos alimentos rituais de divindades do batuque, o acarajé, era antigamente vendido nas ruas. Mas é um costume que desapareceu no Rio Grande do Sul. A culinária rio-grandense de origem africana veio dos povos banto, da região de Angola, de Moçambique e do antigo Congo, como o quibebe, um pirão de abóbora.

"Dom Vicente Scherer manteve uma coluna jornalística e um programa de rádio nos quais atacava o batuque. Hoje, os ataques partem da Igreja Universal"

O alimento, por ser algo indispensável à vida humana, ocupa um lugar importantíssimo nos rituais de boa parte das religiões. No catolicismo, a consagração do pão-hóstia, que representa o corpo de Cristo, e o vinho, o sangue, se constitui no ápice da missa. A expressão "o pão nosso de cada dia..." compõe uma das orações de maior destaque. Nas religiões afro-brasileiras, a principal oferenda são alimentos: de origem animal, como a carne e certos órgãos, ou vegetais, como a polenta e o acarajé, além de bolos, doces.

IHU On-Line – Como se dá o diálogo inter-religioso entre o batuque e as demais religiões em nosso Estado?

Norton Figueiredo Corrêa – Quanto à [Igreja] Universal do Reino de Deus, como disse, é de franco ataque por parte. No meu entender, a incrível tolerância do poder público brasileiro face aos ataques, discriminação e desmoralização que a IURD promove em relação às religiões afro é um exemplo muito ilustrativo, primeiro, do status que elas ocupam na sociedade brasileira, que acompanha o de seus integrantes, os negros, cidadãos de segunda classe. E segundo, do racismo. Se os ataques fossem à religião católica, a questão seria muito diferente, como caso da imagem da santa, chutada pelo pastor.

IHU On-Line – Como ex-aluno de uma instituição jesuíta, como você percebe o diálogo entre as religiões afro-brasileiras e o catolicismo?

Norton Figueiredo Corrêa – Pouco expressivo, especialmente porque são duas visões de mundo opostas e inconciliáveis. Tal constatação me surgiu com base no conhecimento da cosmovisão cristã-católica, que aprendi em família (mas principalmente nas leituras da Bíblia e do catecismo, nas aulas de religião, no velho Colégio Anchieta) e das longas observações que fiz sobre o batuque. A visão católica, desenvolvida por Santo Agostinho através dos escritos de Platão, prega que o destino da alma está relacionado ao que o indivíduo faz em vida. É o que batizei de "efeito-gangorra": se conceder tudo o que o corpo quer (em última análise, o prazer), a alma vai para  inferno. Ao contrário, se se reprimem os desejos do corpo, vai para o céu. Em última análise, a dor redime (a maioria dos santos foram para o céu porque sofreram), e o prazer condena.

Na visão de mundo religiosa afro-brasileira, o destino da alma independe das atitudes do indivíduo em vida: fica vagando, vai para os cemitérios ou se instala numa pequena casinha, o balé, existente nos templos. Como não existe o efeito-gangorra, o prazer não é condenado; pelo contrário, a vida é para ser bem vivida, em todos os sentidos. Os respectivos panteões ilustram tais realidades: por exemplo, enquanto a sexualidade é  condenada no catolicismo (e no céu também não existe sexo), os deuses afro-brasileiros namoram as deusas. As representações sobre o céu remetem à imobilidade (como a missa), mas as referentes aos orixás mostram-nos em movimento: cumprindo certas atividades, guerreando, amando, movimentando-se por certos lugares que lhes são consagrados. Mas o que mais gostam verdadeiramente é de dançar. Para isso, tomam conta dos corpos e mentes de seus filhos espirituais humanos, dançando através deles nas solenidades religiosas realizadas em sua homenagem. Por isso, afirmo que são cosmovisões muito diversas, opostas.

"Exu foi demonizado pelo cristianismo. Mas o feitiço virou contra o feiticeiro: ao associar os religiosos negros ao "mal", deu-lhes o poder manejar com ele"

Graças a tudo isso é que, no meu entender, não tem sentido o que as igrejas cristãs chamam de evangelização, pois não passa pela cabeça de um religioso afro-brasileiro a ideia de que se deve, como Cristo, optar pela dor e pelo sacrifício para salvar a própria  alma. Tais questões, igualmente, é que impedem, também em minha opinião, a  efetivação de um verdadeiro ecumenismo, na mais ampla acepção do termo. A não ser que, antes de tudo, seja reconhecido que há uma enorme assimetria de poder, social e culturalmente falando, entre as religiões cristãs – e, no caso, a católica – e as afro-brasileiras. E, segundo, que o termo se traduza pelo mais amplo, total e irrestrito respeito às diferenças e à visão de mundo de cada um.

IHU On-Line – Quais são os conflitos intra e extrarreligiosos do batuque? Poderia exemplificar?

Norton Figueiredo Corrêa – Os conflitos internos, entre integrantes do mesmo templo e entre os templos, devem-se, em boa parte, à estrutura de sua organização: os templos são unidades hierarquizadas e que permitem a ascensão do fiel aos cargos e posições de prestígio e mando, que têm como ápice o sacerdócio e a abertura de um templo para si. A situação é semelhante entre os templos, pois há uma certa hierarquia e possibilidade de ascensão em matéria de prestígio, na comunidade, trazida também pela visibilidade interna, mas que podem ser potenciadas pela externa, junto à sociedade envolvente.

IHU On-Line – Quais são os principais desafios para o negro hoje,  dentro do tipo de sociedade em que vivemos?

Norton Figueiredo Corrêa – O principal  desafio para o negro, hoje, é batalhar, individual e coletivamente, para superar os obstáculos, especialmente o racismo e a discriminação racial que lhe são postos pela sociedade.

(Reportagem de Moisés Sbardelotto e Márcia Junges)

Link - https://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/28848-batuque-uma-religiao-afro-rio-grandense-em-oposicao-a-cosmovisao-crista-entrevista-especial-com-norton-figueiredo-correa

O BATUQUE E O NEGRO RIO-GRANDENSE. ENTREVISTA ESPECIAL COM NORTON F. CORRÊA

Este texto foi publicado no site do Instituto Humanas Unisinos, em 27/11/2012, acessado em 18/05/2023.


É de conhecimento da população batuqueira o trabalho do professor Norton F. Corrêa, desta formar este blog registra em suas páginas este artigo para o grande acervo que possuímos.  A seguir:

O BATUQUE E O NEGRO RIO-GRANDENSE. ENTREVISTA ESPECIAL COM NORTON F. CORRÊA

O Rio Grande do Sul é um estado muito racista. E o desprezo em relação à figura do negro é projetado sobre suas práticas religiosas, que continuam sendo reprimidas. Tanto a ocultação como a repressão são formas de racismo, constata o antropólogo.

Confira a entrevista.

Questionado a respeito de como o negro se apresenta na história rio-grandense, Norton F. Corrêa, em entrevista concedia por telefone à IHU On-Line, frisa que ele é ocultado. “Há o caso de um historiador gaúcho bastante conhecido, Walter Spalding, que levou tal ocultação ao máximo: afirma que não houve racismo, no Rio Grande do Sul, simplesmente porque não havia negros! Entretanto, as estatísticas da época a que se refere revelam que os negros eram quase 40% da população da então Província. Considero que a prática de ocultar também se deve ao racismo. O Rio Grande do Sul é um estado muito racista.”, frisa.

Para ele, o desprezo em relação à figura do negro é projetado sobre suas práticas religiosas, que continuam sendo reprimidas. “Tanto a ocultação como a repressão são formas de racismo. Mas ele pode se expressar de forma ainda mais sutil, como é o caso das campanhas da turma da ecologia contra os sacrifícios rituais de animais, no batuque. A sutileza está em se escudar num argumento meritório: proteger os animais. Entretanto, é curioso que em um estado com um enorme rebanho bovino, suíno, ovino e centenas de matadouros, legais e ilegais, além de outras tantas centenas de sinagogas que cumprem práticas muito semelhantes, o zelo da turma ecológica recaia apenas sobre o batuque. Por que apenas nele?”, questiona.

Norton F. Corrêa é antropólogo e professor do Programa de Pós-Graduação - PPG em Cultura e Sociedade da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). O pesquisador estará na Unisinos, no próximo dia 27 de novembro, no IHU ideias especial, abordando o tema “Corpo e concepção da pessoa comparados no batuque do Rio Grande do Sul e no catolicismo”, das 17h30min às 19h, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU. Maiores informações: http://migre.me/bYsim.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que maneira o senhor relata em seu livro O batuque do Rio Grande do Sul – Antropologia de uma religião afro-rio-grandense o que de fato ocorre em um templo de batuque? Como o senhor conseguiu essas informações?

Norton F. Corrêa – Consegui as informações a partir de uma longa pesquisa, 20 anos, me aproximando dos templos e ganhando a confiança de muitos sacerdotes e sacerdotisas da comunidade. O convívio com os pesquisados é imprescindível em antropologia. Então, comecei a ir a uma casa, depois em outras, durante este tempo todo.

IHU On-Line – Quais os pontos centrais de sua obra?

Norton F. Corrêa – O ponto central do livro, em minha opinião, é o capítulo onde falo sobre a visão de mundo dos batuqueiros. Ou seja, o que eles pensam sobre mundo, sobre as pessoas. E esse é um trabalho que ainda não vi em outros autores, porque é preciso ter muito convívio, muito tempo de diálogo, para poder entender esse tipo de pensamento deles, visto ser totalmente diferente do pensamento do cristianismo.

IHU On-Line – Qual foi a grande constatação que o senhor obteve com suas pesquisas sobre o batuque?

Norton F. Corrêa – A constatação foi no sentido de ter captado a visão de mundo deles. A parte mais importante do trabalho é esta: ter entendido como é que os batuqueiros pensam.

IHU On-Line – E como é que eles pensam? Qual é a visão de mundo deles?

Norton F. Corrêa – Eles pensam de uma maneira diferente. Se formos comparar a visão de mundo deles, por exemplo, com a visão de mundo cristã, veremos que nesta última a alma tem um destino específico de acordo com o que o indivíduo faz com o corpo em vida. Ou seja, se você ser prazer ao seu corpo, a alma vai para o inferno. Se você não der prazer ao corpo, ela vai para o céu. Resumidamente, a dor salva e o prazer condena.

Temos como exemplo os santos católicos: boa parte foi para o céu porque sofreu. No linguajar coloquial, as pessoas, ao se queixar de dificuldades, dizem: “paguei os meus pecados”. No caso dos batuqueiros, não existe uma relação entre o que se faz com o corpo em vida, ou seja, se você permite ter prazer ou o que quer que seja, o destino da alma é um só. Ela fica vagando, vai para o cemitério, ou vai para outros locais, inclusive no templo,  onde são invocadas ou chamadas para ficar lá. Mas o batuqueiro não tem a ideia da existência de sofrimento ou bem-aventurança eternos, após a morte,  de acordo com o que você faz do seu corpo. Para eles, a alma tem só um destino. E essa é a grande diferença com relação à religião cristã, que prega milenarmente a repressão ao corpo.

Várias ordens religiosas, especialmente de freiras, tapam o corpo, procuram se apresentar como assexuadas, nada mais do que um reflexo das representações que têm sobre o Céu, onde não há sexo, pois este é um dos maiores, talvez o maior, fator de perdição. Observe-se que há, ainda, ordens religiosas, especialmente de freiras, em que ocultam completamente o corpo, ficando apenas com parte do rosto de fora. Para os batuqueiros, não há essa questão. As vestes das mulheres no batuque, muitas vezes, são bem abertas, decotadas, nesses rituais.

IHU On-Line – O que mais lhe impressionou ao realizar esta pesquisa?

Norton F. Corrêa – O que é muito interessante é que se trata de uma religião que está no Rio Grande do Sul há uns 150 anos, guardando tradições africanas de raiz. Eles têm um patrimônio muito importante, que se mantém apesar do tempo, possivelmente pelo fato da sociedade onde se inserem ter um forte viés europoide.

IHU On-Line – De que forma seu livro marca historicamente o início da liberdade de expressão de muitos filiados à religião afro no Rio Grande do Sul?

Norton F. Corrêa – Esta expressão foi usada por um sacerdote do batuque, Pai Rodrigo do Xapana, na contracapa do livro. Talvez porque ele gostou do fato de eu defender veementemente o direito de cada um poder praticar a religião como bem entender, sem que sofra críticas ou repressão de outrem. Geralmente as pessoas pensam que tudo é feitiçaria e que fazem mal ao próximo. O que eu fiz no livro foi mostrar a realidade deles, o que ocorre nos templos, nas cerimônias. Atualmente acho muito louvável que haja vozes e grupos de batuqueiros se levantando, reivindicando seus direitos à prática da religião, assumindo-se publicamente como religiosos, saindo às ruas. Isso é uma coisa nova, sinal dos novos tempos, porque antigamente as pessoas da comunidade eram discriminadas, desqualificadas e nada faziam. Não acredito que o livro tenha influenciado neste processo. É o crescimento de uma consciência de si mesmo, de um não à baixa autoestima.

Antropologia

A antropologia diz que é indispensável ao pesquisador conviver com os pesquisados. Então, convivi durante muitos anos com eles, conheci muitas pessoas. Creio que temos que aprender a trabalhar e conviver com o outro. Isso eles percebiam. Por exemplo, eu respeitava e respeito o que eles faziam ou fazem. Embora eu sempre me apresentasse como pesquisador, tinha uma familiaridade grande com a religião, os grupos, e eles observavam isso. Então, posso dizer que contribuiu muito para essa familiaridade o fato de eu aprender como eles pensam, como agem etc. O longo tempo de convívio me levou a estas conclusões. A integração e confiança que adquiri junto a estes grupos foi porque aprendi a entender e falar a linguagem batuqueira. E isso, então, permite que a gente aprofunde mais a pesquisa, conheça mais, tenha mais e receba mais detalhes, possa captar determinadas coisas, assistir outras que os praticantes do batuque muitas vezes não permitem que leigos assistam.

IHU On-Line – Em que sentido seu livro assinala um marco de um antes e depois na bibliografia sobre as religiões afro-brasileiras no RS?

Norton F. Corrêa – Sem me dar conta, escrevi um livro que, na opinião dos estudiosos, corresponde a um clássico, assim como os de outros autores de outros locais do Brasil que escreveram sobre as religiões de matriz afro de suas regiões. O que acontece, com relação ao batuque, é que até o momento, ninguém escreveu um trabalho mais completo, maior, que descreva os rituais, os templos, seus integrantes, o panteão e, sobretudo, a visão de mundo batuqueira, que é muito semelhante à dos participantes do candomblé, por exemplo. Especificamente sobre os rituais batuqueiros, o que há são livros escritos pelos próprios religiosos, mas nem sempre são muito bem aceitos pelo fato de menos ou mais explicitamente criticarem os colegas, reivindicar que o seu ritual é o correto e assim por diante. Além destes, há monografias e trabalhos de alunos, especialmente da UFRGS, que têm abordado questões sobre o batuque ou outras religiões de matriz afro do Rio Grande do Sul. Mas ninguém, ao que me consta, fez o que eu fiz: uma etnografia bastante completa desta religião, mostrando quem são as pessoas, o que elas fazem, como é que funciona a religião, os templos, a natureza, as suas apresentações tais como os orixás, os mortos e como é que essas pessoas vivem, como é que aprendem a ser batuqueiros. E isso é algo difícil de fazer, também, porque demanda muito tempo de convivência com os pesquisados, dá muito trabalho.

Creio que o livro é bem recebido pelos religiosos, primeiro porque eu não me posiciono, no sentido de achar que isso é verdadeiro e aquilo é errado. Há batuqueiros que condenam os outros pelo erro de desvirtuar supostos preceitos da religião. No meu caso, relato o que eu vi. Não estou me posicionando. Creio que é por isso que o livro teve uma boa aceitação. Talvez, também, pelo estilo despojado, longe do jargão "antropologuês", embora sem perda de conteúdos interpretativos, o que possivelmente contribui para que as pessoas comuns possam lê-lo sem problemas. É um livro simples, pensado para ser simples, porque acho que tem que ser assim mesmo. Escrevi um livro para ser lido por todas as pessoas, e não dirigido especificamente a acadêmicos. Apesar disso, tenho ouvido de colegas da área dizerem que escrevi um clássico, do mesmo modo que outros autores escreveram sobre religiões de matriz africana de outros locais do Brasil.

IHU On-Line – De que maneira o negro é representado na história rio-grandense?

Norton F. Corrêa – A presença da população negra no Rio Grande do Sul é muito significativa, além de o trabalho escravo ter construído as bases da economia local. Acrescente-se a indiscutível importância da herança cultural legada ao contexto rio-grandense. Apesar disso, a cultura negra tem sido muito pouco estudada  o que não deixa de ser uma forma de ocultação. Mas há o caso de um historiador gaúcho bastante conhecido, Walter Spalding, que levou tal ocultação ao máximo: afirma que não houve racismo no Rio Grande do Sul simplesmente porque não havia negros!

Entretanto, as estatísticas da época a que se refere revelam que os negros eram quase 40% da população da então Província. Considero que a prática de ocultar também se deve ao racismo. O Rio Grande do Sul é um estado muito racista. E o desprezo em relação à figura do negro é projetado sobre suas práticas religiosas, que continuam sendo reprimidas. Tanto a ocultação como a repressão são formas de racismo. Mas ele pode se expressar de forma ainda mais sutil, como é o caso das campanhas da turma da ecologia contra os sacrifícios rituais de animais no batuque. A sutileza está em se escudar num argumento meritório: proteger os animais. Entretanto, é curioso que em um estado com um enorme rebanho bovino, suíno, ovino e centenas de matadouros, legais e ilegais, além de outras tantas centenas de sinagogas que cumprem práticas muito semelhantes, o zelo da turma ecológica recaia apenas sobre o batuque. Por que apenas nele?

IHU On-Line – Por que o senhor afirma que este livro lhe trouxe uma grande surpresa? Que surpresa foi esta?

Norton F. Corrêa – Porque eu não esperava uma aceitação tão grande do livro, seja pelos batuqueiros, seja pelos estudiosos. Os primeiros, talvez porque se vejam nele; e os segundos por ser uma fonte de informação antes praticamente inexistente. Algo que me deixa muito feliz é o fato de a maioria dos leitores ser os próprios batuqueiros.

Link - 
https://www.ihu.unisinos.br/?id=515787

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