quarta-feira, 24 de maio de 2023

ORIKI OBALUAYE

Coletamos este vídeo da página do Popoola Owomide Ifagbenusola, com um Oriki de Obaluaye.



Publicado em 13/11/2021 acessado em 24/05/2023.

Neste oriki Obaluaye domina Oso e Iyami. 

Publicamos primeiro em português para o nosso público, a seguir o ioruba e a versão inglês. 


Tradução Português (online) 

Affoooo Olodumare
Aquele com muitos encantos
Aquele que torna a medicina menos eficaz
Ele se irrita e luta contra uma pessoa má com doença
Orixá que usa doenças para torturar pessoas
Sanpannan luta impiedosamente
Ele usa o calor para lutar contra um fofoqueiro
Ele alfinetou uma traição
Ele luta de diferentes maneiras
Orixá que conhece o remédio para doença viral
Ele mostra misericórdia quando recebe milho assado
Ele perdoa depois que lhe ofereceram um óleo de palma fresco
Ele dá favor depois de receber mel
Sanpannan, por favor, não me bata
Seu chicote não deve tocar as pessoas
Aquele que Sanpannan batia com seu chicote
Essa pessoa vai coçar seu corpo até começar a ver seus ossos
Meu senhor, é você que estou chamando
Por favor, não leve meu filho embora
Obaluaye é digno de nossa adoração
Obaluaye, você também vale a pena ter medo
Você é o Orixá que leva a criança e também leva a mãe
Depois de levá-los, você ainda pode voltar e levar o pai
Um Orixá como o Iyami
Você conhece a casa de Oso (bruxo), você conhece o lugar de Aje (Iyami)
Você deu um tapa no Oso, ele morreu na hora
Você pegou a carga de Aje (Iyami)
Meu senhor, é a doença e a enfermidade na minha casa que eu quero que você tire
Por favor, cuide do meu filho para viver muito tempo com boa saúde.
Ase!!!

Oriki Obaluaye
Afoooo Olodumare
Oni woowo Ado
A ru Omo loogun danu
Abinu ja eni ibi leerun
Orisa ti n fi kuruna na eni ni egba
Sanpannan ni onija yerepe
A ko ina ooru mo eke
A da odale kunle bi akandun
A ri ogo ja bi enmo
Orisa to mo oruko ti arun ajakale nje
O ri yangan gbigbe o f’owo wo’nu
O ri epo tutu o gba opo ebe
Igba to ri Oyin, o yonu sini
Sanpannan dakun mo nan mi
Pasan re o see nan Omo
Eni ti Sanpannan ba fi pasan nan
Oluware o ho’ra kan egungun
Oluwa mi Iwo nin ke si o
Ma se wole gbemi l’omo temi lo
Orisa to to sin l’Obaluaye
Obaluaye o eru lo toni I ba
Iwo l’orisa ti n m’omo ti n mun Iya
To ba mun won tan, o tu le pada wa mun Baba
Orisa bi Aje
O mo Ile oso, o ma Ile aje
O gba oso loju
Oso ku fin-in fin-in
O so Aje l’eru kale
Obaluaye arun Ile mi ni o bami rulo
Ko wo Omo mi l’awoye
Ase!!!

Translation: Affoooo Olodumare The one with many charms He who makes medicine less effective He gets angry and fight an evil person with disease Orisa that uses disease to torture people Sanpannan fights mercilessly He uses heat to fight a gossiper He pinned down a betrayal He fights in different ways Orisa that knows the remedy to viral disease He shows mercy when he’s given roasted corn He forgives after he’s offered a cool palm oil He gives favor after receiving honey Sanpannan please do not beat me Your whip must not touch people He who Sanpannan beat with his whip Such person will scratch their body till they start seeing their bones My lord, it’s you that I’m calling Please do not take my child away Obaluaye is worthy of our worship Obaluaye, you are also worth been scared of You are the Orisa who takes the child and also take the mother After taking them, you can still come back and take the father An Orisa like the Iyami You know the home of Oso(wizard), you know the place of Aje(Iyami) You slapped Oso, he died immediately You took the load from the Aje(Iyami) My lord, it’s the disease and sickness in my house that I want you to take away Please watch over my child to live long in good health.
Ase!!!
~ Popoola Owomide Ifagbenusola

terça-feira, 23 de maio de 2023

ODUN KODUN NÃO É FELIZ ANIVERSÁRIO! POR QUÊ?

Por Educa Yoruba
Postado em 2020 (a página não informa a data precisa da publicação)

Ọdún Kọ́dún não é Feliz Aniversário! Por quê?



Mo júbà fún yín!

Talvez umas das afirmações que mais causa espanto seja essa: Ọdun kọ́dún não significa feliz aniversário em Yorùbá!

Isso porque essa expressão, Ọdun kọ́dún, a mensagem de odun koduncorre há tempos no seio do Candomblé e até mesmo Umbanda sendo usada como uma forma de se desejar feliz aniversário. Não estranho expressões com traduções errôneas correrem livremente pelo meio religioso, haja vista àgò sendo usado como desculpa, quando não o é!


Feliz Aniversário em Yorùbá


Vamos começar pelo certo. Se deseja felicitar alguém pelo dia seu nascimento, desejando um feliz aniversário, fazemos uso de algumas estruturas já aprendidas aqui e mais um conhecimento básico de Yorùbá:

Ẹ kú ọjọ́ ìbí
!

Ẹ kú – forma de felicitar (nem sempre algo feliz na verdade, pois se usa em pêsames), desejar algo a alguém. Entre na maioria das saudações;

Ọjọ́ ìbí – dia do nascimento. Ọjọ́ = dia, ìbí = nascimento, lembrando que um dos significados é o verbo nascer, colocando uma vogal na frente transforma-se em um substantivo, no caso, nascimento.

Outra forma, fazendo jus ao respeito hierárquico existente na cultura Yorùbá é trocar o Ẹ kú por O kú, sendo aquele usado para pessoas mais velhas/ hierarquicamente superior seja religiosa ou militarmente falando/ para mais de uma pessoa, um grupo; e esse usado para uma pessoa mais jovem, um amigo.

O kú ọjọ́ ìbí!

Havendo ainda uma forma mais antiga, para os que adoram fazer uso de arcaísmo, expressa da seguinte forma: Aku ọjọ́ ìbí!

Essa é a forma facilmente explicada e usada dentro do idioma Yorùbá. Essa é a forma bem específica para desejarmos que o dia de nascimento daquela pessoa seja feliz novamente, assim como foi de fato foi quando ela veio ao mundo.

Outras formas de dizer Parabéns!

No entanto, mágico, surpreendente e fascinante como o idioma é, não poderia deixar de haver variações que podemos expressar “parabéns”. Mas atenção, nem todas são exatamente um feliz aniversário, porém tem a conotação de parabéns, desejar coisas boas. Dessa forma, podem ser usadas até mesmo quando uma pessoa faz algo muito bom ou ganha uma promoção. Vamos lá:

Ẹ kú orire o!/ Ẹ kú ori’re o!

Lembro bem do ano de 2018 quando recebi um e-mail em inglês de um nigeriano. Ele dizia que estava incorreto algumas expressões e que na cidade dele o correto de se dizer parabéns é Ẹ kú orire o! Ele estava errado e certo, errado em desmerecer as outras formas (Uma delas grafada no dicionário mais antigo que há acerca do idioma!) e certo com o termo apresentado.

Ẹ kú – forma de desejar algo de bom, como já aprendemos;

Oríre – sorte para sua cabeça (Orí = cabeça; ire = sorte);

Ou seja: desejo sorte para sua cabeça. Inclusive é uma saudação que pode ser usada em um ritual de bọrí. Anote essa!!


Bí Bayọ̀

Essa forma apresentei no meu antigo curso de Yorùbá, ano de 2008. Muitos ficavam curiosos e a explicação é bem simples. Lembrando que essa forma é grafa no antigo dicionário de Samuel Ajayi Crowther , ano de 1853 (Novamente, para os que curtem arcaísmos).

– verbo nascer, como explicado anteriormente;

Báyọ̀ – encontre a felicidade, alegria, felicitar, traga alegria. = encontrar, alcançar; ayọ̀ = alegria. Aquela expressão que deve ser interpretada e não levada ao cabo. Que seu nascimento traga felicidades. Uma aluna uma vez pontuou de uma forma que gostei: seria melhor usada para uma criança ao nascer.

Mas a expressão consta como verbo em dicionário brasileiros: congratular, felicitar! Ou seja, mo báyọ̀ fún o ìségun titun! Eu o congratulo por sua nova vitória!

Ẹ kú ìyédun

Mais uma palavra que você pode usar para expressar parabéns, no caso aniversário mesmo. Não há certeza da etimologia dessa palavra, mas possivelmente nasça de :

Ẹ kú – já sabemos rs;

Ìyèdún – passagem de ano;

Ou seja, que desejo uma boa passagem de ano!

Ufa! Acabaram as formas de se felicitar? Não!

Em verdade, como sempre digo, a plasticidade do idioma permite que, atendendo às regras gramaticais e culturais, você encontrará diversas forma de expressar algo em Yorùbá. Lembrando que é um povo com variadas formas de saudações.

Em minha antiga apostila haviam outras formas, mas Ẹ kú ojo ìbí é a disparada como a mais utilizada e aceita! Todos os fóruns de idioma e cultura Yorùbá pontuam essa expressão como a utilizada e todos desconhecem a próxima que veremos…

O Que Significa Ọdún Kọ́dún?


Peço, neste momento, licença aos meus alunos por expor parte do que é ensinado no Curso Fundamentos do Idioma Yorùbá (Curso com Videoaulas e Apostilas em PDF).

Quando estamos aprendendo Yorùbá, idioma, língua com suas regras gramaticais por vezes criticadas por quem acredita no idioma somente com uso religioso, aprendemos sobre o uso de conjunções e uma delas é .

possui vários significados, pois é uma palavra que sofre um fenômeno chamado homonímia, ou seja, possui mesmo som(homófona) e escrita (homógrafa), mas com significado variado. Tenso, não é? E possui diversas, podendo ser verbo, conjunção, advérbio, partícula pré-verbal e etc!

Leia a palavra Ohun kóhun/ ohunkóhun. Nela encontramos o uso da conjunção , neste caso dando a denotação de qualquer, seguido, um após o outro e etc!

Ohun kóhun/ ohunkóhun = qualquer coisa, uma coisa após outra, uma coisa seguida de outra, coisa com coisa, coisa alguma. Lembrando que ohun = coisa, algo, alguma coisa.

Bàbá mi sọ̀rọ̀ mi ohunkóhun! – Meu pai me falou qualquer coisa!

Seguindo o mesmo raciocínio, temos a palavra tão usada que é Ọdún Kọ́dún (orodun é um plus que costumam colocar!) e sempre dizem, sem saber explicar, que significa Feliz Aniversário. Nenhum fórum de cultura e idioma Yorùbá reconhece essa palavra com este significado!

Odún kódún/ odunkodun/ odun kódun – anos após ano, ano seguido de ano, qualquer ano, todo ano!

Ela indica algo que se faz anualmente? Sim!

Ela deseja alguma coisa? Não, sozinha não! Trata-se de um adverbio! Veja a melhor forma de uso:

Ìyá mi dáfá mi ọdún kọ́dún! – Minha mãe consulta Ifá para mim todo ano/ anualmente/ ano após ano.

Èmi kìí pa fún òrìṣà mi ọdún kọ́dún! – Eu não irei matar para meu òrìṣà todo ano.

Há uma teoria caduca de que o termo estaria desejando um ano doce! Digamos que eu invente essa expressão, ela seria algo um pouco longe da expressão acima: Ẹ kú ọdún kọ́dún! Estranho, não é? Mas literalmente significa que seu ano seja doce!

Lembrando que por tempos o povo usou àgò como desculpas e muitas outras expressões acreditando cegamente terem um determinado significado, mas a luz do estudo gramatical, linguístico e até mesmo sociolinguístico, vemos que cai por terra muitas expressões inventadas aqui ou até mesmo corrompidas aqui no Brasil!

Dúvidas/ Sugestões/ Críticas e Xingamentos: contato@educayoruba.com

Finalizamos


E então espero que tenha gostado de aprender como de fato dizer feliz aniversário, felicitando tudo de bom para alguém querido que esteja nesta data tão querida!
Fonte - https://educayoruba.com/odun-kodun-nao-e-feliz-aniversario-por-que/

FELIZ JAKUTA SANGO

Sango está comendo porco, fotos coletadas no perfil do sacerdote nativo.

Postado por Ààre Sàngódélé Sàngókáyòdé

Em 23/05/2023




Feliz jakuta sango hoje

Que sango olukoso sempre nos abençoe com boa saúde
(ARMA 🙏🙏🙏♥️)

segunda-feira, 22 de maio de 2023

IDIOMA YORUBA: NA MATRIZ E NA DIÁSPORA

Por Erick Wolff de Oxalá
Em 22/05/2023

Este ensaio tem por finalidade levantar um estudo sobre o idioma Yorùbá na Matriz e na diáspora.

Lembrando que os mais velhos e os iniciantes na sua humilde dedicação da religião, fazem o melhor para preservar o dialeto, entretanto, muito se perdeu do idioma na diáspora batuqueira, por isso convidamos professores e estudiosos para uma reflexão sobre o tema. 

O artigo "Koine – a língua geral Iorubá" publicado por Ayo Bamgbose (1996), foi traduzido pelo Luiz L. Marins para a revista Olórun, julho, 2020. Vejamos a seguir o trecho que fala sobre o idioma:

 

[...] A língua iorubá é um “dialeto contínuo” falado por volta de vinte milhões de pessoas, na Africa Ocidental, numa área que cobre a Nigéria Ocidental, Dahomé, Togo e Ghana [...] 

Fonte - https://revistaolorun.files.wordpress.com/2020/08/revista-olorun-80.pdf 

Eventualmente escutamos que o Yorùbá é uma língua morta, no entanto, este mapa demonstra que o Yorùbá, é um idioma falado em grande parte da Nigéria e do Benin. Vejamos na imagem: 


O sacerdote Nathan, informa sobre o idioma Yorùbá em terras Nigerianas e Fon:

"E tem varias familias assim que eu conheço pessoalmente - não preciso especificar estes últimos exemplos. Mas existem, e estão recebendo outros òrìṣà aos poucos.

Estou falando de Iorubalândia, tanto na maior parte que fica dentro da Nigéria como também na República de Benin." (Nathan, 2022) 

Fonte - https://iledeobokum.blogspot.com/2022/02/curiosidades-sobre-orisa-em-terra-yoruba.html 


Enquanto isso, abro espaço para estudo, pois na diáspora religiosa Afrosul, possamos discutir sobre o idioma, ao qual pouco foi preservado. 

Em vídeo o Onilu Antonio Carlos, explica que:


[...] A língua que nós falamos, é uma língua afro-brasileira.... entendeu?... porque um exemplo que eu vou dar... (cantando)... antigamente era diferente.... (cantando)... então as pessoas de hoje teria uma dificuldade para desenvolver na língua... entendeu?.... então o qui que aconteceu nesse.... facilitaram mais... entendeu?... não tão afro puro [...]  


Incluindo-se algumas palavras que já divulgamos, para analise e estudos. 











 

quinta-feira, 18 de maio de 2023

BATUQUE: UMA RELIGIÃO AFRO-RIO-GRANDENSE EM OPOSIÇÃO À COSMOVISÃO CRISTÃ. ENTREVISTA ESPECIAL COM NORTON FIGUEIREDO CORRÊA

Esta entrevista foi publicada no site IHU, em 12/01/2010, acessado em 18/05/2023. 

Na entrevista o professor Norton F. Corrêa expressa o seu ponto de vista sobre a origem do Batuque e a religião cristã. A seguir: 




BATUQUE: UMA RELIGIÃO AFRO-RIO-GRANDENSE EM OPOSIÇÃO À COSMOVISÃO CRISTÃ. ENTREVISTA ESPECIAL COM NORTON FIGUEIREDO CORRÊA

Nascido no Rio Grande do Sul, o batuque, religião afro-brasileira de culto aos Orixás, encontrou no solo gaúcho um território receptivo, apesar do racismo e das importância social e política das religiões cristãs, especialmente da Igreja Católica. Sinal disso é que os deuses do batuque recebem polenta ou churrasco como oferendas, além de caldos com erva-mate, e vestem até bombacha.

Mas, para o Prof. Dr. Norton Figueiredo Corrêa, existe por trás disso uma enorme assimetria de poder social e cultural, especialmente entre as religiões cristãs e as afro-brasileiras. Em termos de cosmovisão, por exemplo, ele afirma que, "enquanto a sexualidade é condenada no catolicismo (e no céu também não existe sexo), os deuses afro-brasileiros namoram as deusas". E se o céu católico-cristão parece algo eternamente inerte, as representações referentes aos orixás "mostram-nos em movimento, guerreando, amando".

Nesta entrevista concedida à IHU On-Line, por e-mail, Corrêa defende que justamente os brancos que ocupam as posições de maior poder na sociedade gaúcha é que vão buscar o poder simbólico que creditam aos sacerdotes da comunidade religiosa afro-brasileira. Segundo ele, Borges de Medeiros (1863-1961), presidente do Estado do Rio Grande do Sul por mais de 25 anos, era cliente de um famoso e rico sacerdote africano. Por outro lado, Dom Vicente Scherer (1903-1996), cardeal e ex-arcebispo de Porto Alegre, manteve, por muitos anos, um ataque frontal às religiões afro, hoje manifestado pela Igreja Universal do Reino de Deus.

Norton Figueiredo Corrêa é sociólogo, graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestre em antropologia social pela mesma universidade e doutor em ciências sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Atualmente, é professor adjunto da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e do mestrado interdisciplinar Cultura e Sociedade da mesma universidade. É autor de "O Batuque do Rio Grande do Sul: Antropologia de uma religião afro-rio-grandense" (Ed. Cultura & Arte, 2006), já na sua segunda edição.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são as origens do batuque? Poderia  situá-las?

Norton Figueiredo Corrêa – O batuque provavelmente surgiu em Rio Grande, na segunda metade do século XIX. Um trabalho muito interessante de mestrado, de Jovani Scherer, detectou uma considerável colônia de nagôs na cidade. É possível que uma parte dos negros de origem jêje-nagô tivessem vindo da África, diretamente, e uma parte de outros Estados brasileiros. São extraordinariamente grandes as semelhanças entre o batuque e o xangô pernambucano. Do Rio Grande do Sul, o batuque migrou para o Prata, hoje há muitas casas "de religião", para usar um termo usado por seus integrantes, na ArgentinaUruguai, Paraguai e outros países vizinhos.

IHU On-Line – Quais são as suas peculiaridades e diferenças em relação a outras religiões afro-brasileiras?

Norton Figueiredo Corrêa – Uma das peculiaridades do batuque – mas comum a qualquer religião – é a adaptação ao contexto regional. No caso do batuque, Oxum, a deusa das águas doces, tem como oferenda a polenta, influência da colônia italiana. O Bará, divindade das encruzilhadas e caminhos, recebe batatas inglesas assadas, sendo que a batata, embora americana, foi popularizada pela colônia alemã. A veste ritual masculina é a bombacha e o churrasco é o alimento preferido de Ogum, o deus da guerra e das artes manuais. E os eguns, os espíritos dos mortos, recebem uma espécie de caldo, o mieró de egum, ao qual alguns templos adicionam erva-mate. Mas há diferenças variadas entre o batuque e outras religiões, especialmente as de influência banto, como a umbanda e o candomblé de caboclo baiano.

IHU On-Line – Qual a importância do batuque na construção da sociabilidade e da religiosidade do gaúcho?

Norton Figueiredo Corrêa – Podemos falar na sociabilidade interna à religião e externa a ela. Internamente, entendo que o batuque foi um espaço simbólico criado pelos negros urbanos com a função de praticarem a sociabilidade, de se auto-protegerem contra a repressão da sociedade branca e construírem uma identidade própria, grupal. Com o tempo, os brancos, especialmente das classes baixas, começam a ingressar na religião, e muitos deles, mesmo no passado, assumiram a condição de pais e mães-de-santo e se tornaram muito famosos e respeitados dentro e fora da comunidade. Atualmente, o número de brancos aumentou, inclusive descendentes de italianos e alemães. O que ocorre com eles é que a conversão às religiões afro, mas mais especialmente ao batuque, implica na aquisição de uma visão de mundo muito específica, que se opõe diametralmente à cristã. São brancos na pele, mas negros na cabeça.

"A conversão às religiões afro implica na aquisição de uma visão de mundo muito específica, que se opõe à cristã"

A expressão "sociedade gaúcha" é complicada, porque os religiosos afro-brasileiros pertencem a ela. Se falarmos dos não filiados às religiões afro, a grande influência delas se traduz pelo fato de que os não filiados acreditam firmemente no poder simbólico que elas possuem. Quando falei em espaço criado, trata-se, na verdade, de um espaço negociado entre a comunidade religiosa e a sociedade envolvente. Há dois pontos a considerar. Os brancos ocupam as posições de maior poder na sociedade gaúcha, e esta, em caráter oficial, apenas tolera as religiões afro. Mas são justamente essas pessoas, individualmente, que vão buscar o poder simbólico que creditam aos sacerdotes da comunidade religiosa afro-brasileira.

A classe alta gaúcha e o batuque

Observei tal fenômeno, que é muito recorrente, durante os 20 anos de pesquisa sobre o batuque. Ouvi, de pais e mães-de-santo, descrições muito precisas e detalhadas de escritórios, consultórios, indústrias, lojas e empresas de grande porte, para onde foram levados por seus proprietários para fazerem serviços religiosos. Assinale-se que o detalhamento excedia os locais frequentados pela clientela ou público, estendendo-se, por exemplo, a almoxarifados, salas reservadas etc.

Além disso, muitos dos nomes dos respectivos proprietários eram de pessoas de grande visibilidade na sociedade gaúcha. Diz-se que Borges de Medeiros [(1863-1961), presidente do Estado do Rio Grande do Sul por mais de 25 anos], nos anos 1930, era cliente do Príncipe, um famoso e rico sacerdote africano que veio morar em Porto Alegre. Testemunhas afirmam que ele o atendia – assim como a outros políticos – a portas fechadas, em seu templo. E que teria "sentado" (isto é, entronizado) um Bará, no Palácio Piratini.

O segundo ponto a ser considerado é que é muito difícil que uma família pobre, no Rio Grande do Sul, mesmo branca, que não tenha vários membros iniciados ou frequentadores de religiões afro. Uma grande quantidade de pessoas, além disso, já jogou búzios e sabe quem são seus orixás ou entidades, porque, na visão de mundo batuqueira, cada indivíduo, não importa se iniciado ou não, mesmo os de outros locais do mundo, são filhos espirituais de dois orixás, um que comanda a cabeça, e outro, o corpo.

Repressão católico-cristã

É um fenômeno semelhante ao que ocorre na Bahia, mas com a diferença de que no Rio Grande do Sul não existe, como lá, a enorme badalação (muito para fins turísticos, esclareça-se) que é feita sobre o candomblé e seus orixás. O número de templos afro-gaúchos, estimado em cerca de 30 mil, supera os do Rio de Janeiro e os da Bahia. Outro indicador – a abundância de despachos em rios, cachoeiras, ruas, praias, cemitérios, matas (o que, inclusive, ensejou tentativas de regulamentação através de leis) – é uma característica local, não observável nos outros estados referidos. A presença e pujança das religiões afro-gaúchas é algo extraordinário em se tratando de Brasil. Mas, pode-se perguntar, qual o motivo de tanta vitalidade justamente num Estado considerado o mais branco da Federação? A resposta, na minha opinião, remete para a questão do racismo no Rio Grande do Sul, que é  muito forte, além da grande presença e influência política, social e simbólica da Igreja Católica, que até bem recentemente foi a grande responsável pela repressão a estas religiões.

"Borges de Medeiros era cliente de um famoso e rico sacerdote africano. Ele teria "sentado" (entronizado) um Bará no Palácio Piratini"

Uma figura de muita projeção, como Dom Vicente Scherer [(1903-1996), arcebispo de Porto Alegre entre 1946 e 1981. Em 1969, foi designado cardeal], manteve, por muitos anos, uma coluna jornalística, além de um programa de rádio, nos quais atacava violentamente tais religiões. Atualmente, os ataques partem da [IgrejaUniversal do Reino de Deus (IURD), também uma instituição cristã. Aí voltamos à questão do espaço de sociabilidade que os negros criaram, uma resposta a um ambiente hostil.

Não é demais acrescentar que, de certo modo, a arma simbólica potencial representada pela feitiçaria – ou seja, a possibilidade de manobrar com forças sobrenaturais perigosas, conhecidas apenas pelos integrantes da comunidade religiosa – ocupa um ponto importante nas relações sociais no Rio Grande do Sul: brancos e negros acreditam em tais poderes, mas ambos concordam que são os negros que detêm tais poderes. Ou seja, o feitiço, como possibilidade, atua também como um moderador do poder branco. A questão também se projeta no caso de Exu. Divindade africana dos caminhos e encruzilhadas, foi demonizado pelo cristianismo. Mas o feitiço virou contra o feiticeiro: ao associar os religiosos negros ao "mal", deu-lhes, de bandeja, a condição de serem proprietários deste e, por conseguinte, o poder de manejar com ele. Os muito humanos desejos de vingança, os sentimentos como raiva e ódio impotentes encontram aí um canal de expressão e liberação. Alguém, pergunta-se, pediria a uma divindade cristã que aniquilasse com a amante do marido, por exemplo?

IHU On-Line – E quais são as influências do batuque na culinária, também ritual?

Norton Figueiredo Corrêa – Muito pequenas, porque é algo que permanece no intra-muros dos templos. Um dos poucos alimentos rituais de divindades do batuque, o acarajé, era antigamente vendido nas ruas. Mas é um costume que desapareceu no Rio Grande do Sul. A culinária rio-grandense de origem africana veio dos povos banto, da região de Angola, de Moçambique e do antigo Congo, como o quibebe, um pirão de abóbora.

"Dom Vicente Scherer manteve uma coluna jornalística e um programa de rádio nos quais atacava o batuque. Hoje, os ataques partem da Igreja Universal"

O alimento, por ser algo indispensável à vida humana, ocupa um lugar importantíssimo nos rituais de boa parte das religiões. No catolicismo, a consagração do pão-hóstia, que representa o corpo de Cristo, e o vinho, o sangue, se constitui no ápice da missa. A expressão "o pão nosso de cada dia..." compõe uma das orações de maior destaque. Nas religiões afro-brasileiras, a principal oferenda são alimentos: de origem animal, como a carne e certos órgãos, ou vegetais, como a polenta e o acarajé, além de bolos, doces.

IHU On-Line – Como se dá o diálogo inter-religioso entre o batuque e as demais religiões em nosso Estado?

Norton Figueiredo Corrêa – Quanto à [Igreja] Universal do Reino de Deus, como disse, é de franco ataque por parte. No meu entender, a incrível tolerância do poder público brasileiro face aos ataques, discriminação e desmoralização que a IURD promove em relação às religiões afro é um exemplo muito ilustrativo, primeiro, do status que elas ocupam na sociedade brasileira, que acompanha o de seus integrantes, os negros, cidadãos de segunda classe. E segundo, do racismo. Se os ataques fossem à religião católica, a questão seria muito diferente, como caso da imagem da santa, chutada pelo pastor.

IHU On-Line – Como ex-aluno de uma instituição jesuíta, como você percebe o diálogo entre as religiões afro-brasileiras e o catolicismo?

Norton Figueiredo Corrêa – Pouco expressivo, especialmente porque são duas visões de mundo opostas e inconciliáveis. Tal constatação me surgiu com base no conhecimento da cosmovisão cristã-católica, que aprendi em família (mas principalmente nas leituras da Bíblia e do catecismo, nas aulas de religião, no velho Colégio Anchieta) e das longas observações que fiz sobre o batuque. A visão católica, desenvolvida por Santo Agostinho através dos escritos de Platão, prega que o destino da alma está relacionado ao que o indivíduo faz em vida. É o que batizei de "efeito-gangorra": se conceder tudo o que o corpo quer (em última análise, o prazer), a alma vai para  inferno. Ao contrário, se se reprimem os desejos do corpo, vai para o céu. Em última análise, a dor redime (a maioria dos santos foram para o céu porque sofreram), e o prazer condena.

Na visão de mundo religiosa afro-brasileira, o destino da alma independe das atitudes do indivíduo em vida: fica vagando, vai para os cemitérios ou se instala numa pequena casinha, o balé, existente nos templos. Como não existe o efeito-gangorra, o prazer não é condenado; pelo contrário, a vida é para ser bem vivida, em todos os sentidos. Os respectivos panteões ilustram tais realidades: por exemplo, enquanto a sexualidade é  condenada no catolicismo (e no céu também não existe sexo), os deuses afro-brasileiros namoram as deusas. As representações sobre o céu remetem à imobilidade (como a missa), mas as referentes aos orixás mostram-nos em movimento: cumprindo certas atividades, guerreando, amando, movimentando-se por certos lugares que lhes são consagrados. Mas o que mais gostam verdadeiramente é de dançar. Para isso, tomam conta dos corpos e mentes de seus filhos espirituais humanos, dançando através deles nas solenidades religiosas realizadas em sua homenagem. Por isso, afirmo que são cosmovisões muito diversas, opostas.

"Exu foi demonizado pelo cristianismo. Mas o feitiço virou contra o feiticeiro: ao associar os religiosos negros ao "mal", deu-lhes o poder manejar com ele"

Graças a tudo isso é que, no meu entender, não tem sentido o que as igrejas cristãs chamam de evangelização, pois não passa pela cabeça de um religioso afro-brasileiro a ideia de que se deve, como Cristo, optar pela dor e pelo sacrifício para salvar a própria  alma. Tais questões, igualmente, é que impedem, também em minha opinião, a  efetivação de um verdadeiro ecumenismo, na mais ampla acepção do termo. A não ser que, antes de tudo, seja reconhecido que há uma enorme assimetria de poder, social e culturalmente falando, entre as religiões cristãs – e, no caso, a católica – e as afro-brasileiras. E, segundo, que o termo se traduza pelo mais amplo, total e irrestrito respeito às diferenças e à visão de mundo de cada um.

IHU On-Line – Quais são os conflitos intra e extrarreligiosos do batuque? Poderia exemplificar?

Norton Figueiredo Corrêa – Os conflitos internos, entre integrantes do mesmo templo e entre os templos, devem-se, em boa parte, à estrutura de sua organização: os templos são unidades hierarquizadas e que permitem a ascensão do fiel aos cargos e posições de prestígio e mando, que têm como ápice o sacerdócio e a abertura de um templo para si. A situação é semelhante entre os templos, pois há uma certa hierarquia e possibilidade de ascensão em matéria de prestígio, na comunidade, trazida também pela visibilidade interna, mas que podem ser potenciadas pela externa, junto à sociedade envolvente.

IHU On-Line – Quais são os principais desafios para o negro hoje,  dentro do tipo de sociedade em que vivemos?

Norton Figueiredo Corrêa – O principal  desafio para o negro, hoje, é batalhar, individual e coletivamente, para superar os obstáculos, especialmente o racismo e a discriminação racial que lhe são postos pela sociedade.

(Reportagem de Moisés Sbardelotto e Márcia Junges)

Link - https://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/28848-batuque-uma-religiao-afro-rio-grandense-em-oposicao-a-cosmovisao-crista-entrevista-especial-com-norton-figueiredo-correa

O BATUQUE E O NEGRO RIO-GRANDENSE. ENTREVISTA ESPECIAL COM NORTON F. CORRÊA

Este texto foi publicado no site do Instituto Humanas Unisinos, em 27/11/2012, acessado em 18/05/2023.


É de conhecimento da população batuqueira o trabalho do professor Norton F. Corrêa, desta formar este blog registra em suas páginas este artigo para o grande acervo que possuímos.  A seguir:

O BATUQUE E O NEGRO RIO-GRANDENSE. ENTREVISTA ESPECIAL COM NORTON F. CORRÊA

O Rio Grande do Sul é um estado muito racista. E o desprezo em relação à figura do negro é projetado sobre suas práticas religiosas, que continuam sendo reprimidas. Tanto a ocultação como a repressão são formas de racismo, constata o antropólogo.

Confira a entrevista.

Questionado a respeito de como o negro se apresenta na história rio-grandense, Norton F. Corrêa, em entrevista concedia por telefone à IHU On-Line, frisa que ele é ocultado. “Há o caso de um historiador gaúcho bastante conhecido, Walter Spalding, que levou tal ocultação ao máximo: afirma que não houve racismo, no Rio Grande do Sul, simplesmente porque não havia negros! Entretanto, as estatísticas da época a que se refere revelam que os negros eram quase 40% da população da então Província. Considero que a prática de ocultar também se deve ao racismo. O Rio Grande do Sul é um estado muito racista.”, frisa.

Para ele, o desprezo em relação à figura do negro é projetado sobre suas práticas religiosas, que continuam sendo reprimidas. “Tanto a ocultação como a repressão são formas de racismo. Mas ele pode se expressar de forma ainda mais sutil, como é o caso das campanhas da turma da ecologia contra os sacrifícios rituais de animais, no batuque. A sutileza está em se escudar num argumento meritório: proteger os animais. Entretanto, é curioso que em um estado com um enorme rebanho bovino, suíno, ovino e centenas de matadouros, legais e ilegais, além de outras tantas centenas de sinagogas que cumprem práticas muito semelhantes, o zelo da turma ecológica recaia apenas sobre o batuque. Por que apenas nele?”, questiona.

Norton F. Corrêa é antropólogo e professor do Programa de Pós-Graduação - PPG em Cultura e Sociedade da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). O pesquisador estará na Unisinos, no próximo dia 27 de novembro, no IHU ideias especial, abordando o tema “Corpo e concepção da pessoa comparados no batuque do Rio Grande do Sul e no catolicismo”, das 17h30min às 19h, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU. Maiores informações: http://migre.me/bYsim.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que maneira o senhor relata em seu livro O batuque do Rio Grande do Sul – Antropologia de uma religião afro-rio-grandense o que de fato ocorre em um templo de batuque? Como o senhor conseguiu essas informações?

Norton F. Corrêa – Consegui as informações a partir de uma longa pesquisa, 20 anos, me aproximando dos templos e ganhando a confiança de muitos sacerdotes e sacerdotisas da comunidade. O convívio com os pesquisados é imprescindível em antropologia. Então, comecei a ir a uma casa, depois em outras, durante este tempo todo.

IHU On-Line – Quais os pontos centrais de sua obra?

Norton F. Corrêa – O ponto central do livro, em minha opinião, é o capítulo onde falo sobre a visão de mundo dos batuqueiros. Ou seja, o que eles pensam sobre mundo, sobre as pessoas. E esse é um trabalho que ainda não vi em outros autores, porque é preciso ter muito convívio, muito tempo de diálogo, para poder entender esse tipo de pensamento deles, visto ser totalmente diferente do pensamento do cristianismo.

IHU On-Line – Qual foi a grande constatação que o senhor obteve com suas pesquisas sobre o batuque?

Norton F. Corrêa – A constatação foi no sentido de ter captado a visão de mundo deles. A parte mais importante do trabalho é esta: ter entendido como é que os batuqueiros pensam.

IHU On-Line – E como é que eles pensam? Qual é a visão de mundo deles?

Norton F. Corrêa – Eles pensam de uma maneira diferente. Se formos comparar a visão de mundo deles, por exemplo, com a visão de mundo cristã, veremos que nesta última a alma tem um destino específico de acordo com o que o indivíduo faz com o corpo em vida. Ou seja, se você ser prazer ao seu corpo, a alma vai para o inferno. Se você não der prazer ao corpo, ela vai para o céu. Resumidamente, a dor salva e o prazer condena.

Temos como exemplo os santos católicos: boa parte foi para o céu porque sofreu. No linguajar coloquial, as pessoas, ao se queixar de dificuldades, dizem: “paguei os meus pecados”. No caso dos batuqueiros, não existe uma relação entre o que se faz com o corpo em vida, ou seja, se você permite ter prazer ou o que quer que seja, o destino da alma é um só. Ela fica vagando, vai para o cemitério, ou vai para outros locais, inclusive no templo,  onde são invocadas ou chamadas para ficar lá. Mas o batuqueiro não tem a ideia da existência de sofrimento ou bem-aventurança eternos, após a morte,  de acordo com o que você faz do seu corpo. Para eles, a alma tem só um destino. E essa é a grande diferença com relação à religião cristã, que prega milenarmente a repressão ao corpo.

Várias ordens religiosas, especialmente de freiras, tapam o corpo, procuram se apresentar como assexuadas, nada mais do que um reflexo das representações que têm sobre o Céu, onde não há sexo, pois este é um dos maiores, talvez o maior, fator de perdição. Observe-se que há, ainda, ordens religiosas, especialmente de freiras, em que ocultam completamente o corpo, ficando apenas com parte do rosto de fora. Para os batuqueiros, não há essa questão. As vestes das mulheres no batuque, muitas vezes, são bem abertas, decotadas, nesses rituais.

IHU On-Line – O que mais lhe impressionou ao realizar esta pesquisa?

Norton F. Corrêa – O que é muito interessante é que se trata de uma religião que está no Rio Grande do Sul há uns 150 anos, guardando tradições africanas de raiz. Eles têm um patrimônio muito importante, que se mantém apesar do tempo, possivelmente pelo fato da sociedade onde se inserem ter um forte viés europoide.

IHU On-Line – De que forma seu livro marca historicamente o início da liberdade de expressão de muitos filiados à religião afro no Rio Grande do Sul?

Norton F. Corrêa – Esta expressão foi usada por um sacerdote do batuque, Pai Rodrigo do Xapana, na contracapa do livro. Talvez porque ele gostou do fato de eu defender veementemente o direito de cada um poder praticar a religião como bem entender, sem que sofra críticas ou repressão de outrem. Geralmente as pessoas pensam que tudo é feitiçaria e que fazem mal ao próximo. O que eu fiz no livro foi mostrar a realidade deles, o que ocorre nos templos, nas cerimônias. Atualmente acho muito louvável que haja vozes e grupos de batuqueiros se levantando, reivindicando seus direitos à prática da religião, assumindo-se publicamente como religiosos, saindo às ruas. Isso é uma coisa nova, sinal dos novos tempos, porque antigamente as pessoas da comunidade eram discriminadas, desqualificadas e nada faziam. Não acredito que o livro tenha influenciado neste processo. É o crescimento de uma consciência de si mesmo, de um não à baixa autoestima.

Antropologia

A antropologia diz que é indispensável ao pesquisador conviver com os pesquisados. Então, convivi durante muitos anos com eles, conheci muitas pessoas. Creio que temos que aprender a trabalhar e conviver com o outro. Isso eles percebiam. Por exemplo, eu respeitava e respeito o que eles faziam ou fazem. Embora eu sempre me apresentasse como pesquisador, tinha uma familiaridade grande com a religião, os grupos, e eles observavam isso. Então, posso dizer que contribuiu muito para essa familiaridade o fato de eu aprender como eles pensam, como agem etc. O longo tempo de convívio me levou a estas conclusões. A integração e confiança que adquiri junto a estes grupos foi porque aprendi a entender e falar a linguagem batuqueira. E isso, então, permite que a gente aprofunde mais a pesquisa, conheça mais, tenha mais e receba mais detalhes, possa captar determinadas coisas, assistir outras que os praticantes do batuque muitas vezes não permitem que leigos assistam.

IHU On-Line – Em que sentido seu livro assinala um marco de um antes e depois na bibliografia sobre as religiões afro-brasileiras no RS?

Norton F. Corrêa – Sem me dar conta, escrevi um livro que, na opinião dos estudiosos, corresponde a um clássico, assim como os de outros autores de outros locais do Brasil que escreveram sobre as religiões de matriz afro de suas regiões. O que acontece, com relação ao batuque, é que até o momento, ninguém escreveu um trabalho mais completo, maior, que descreva os rituais, os templos, seus integrantes, o panteão e, sobretudo, a visão de mundo batuqueira, que é muito semelhante à dos participantes do candomblé, por exemplo. Especificamente sobre os rituais batuqueiros, o que há são livros escritos pelos próprios religiosos, mas nem sempre são muito bem aceitos pelo fato de menos ou mais explicitamente criticarem os colegas, reivindicar que o seu ritual é o correto e assim por diante. Além destes, há monografias e trabalhos de alunos, especialmente da UFRGS, que têm abordado questões sobre o batuque ou outras religiões de matriz afro do Rio Grande do Sul. Mas ninguém, ao que me consta, fez o que eu fiz: uma etnografia bastante completa desta religião, mostrando quem são as pessoas, o que elas fazem, como é que funciona a religião, os templos, a natureza, as suas apresentações tais como os orixás, os mortos e como é que essas pessoas vivem, como é que aprendem a ser batuqueiros. E isso é algo difícil de fazer, também, porque demanda muito tempo de convivência com os pesquisados, dá muito trabalho.

Creio que o livro é bem recebido pelos religiosos, primeiro porque eu não me posiciono, no sentido de achar que isso é verdadeiro e aquilo é errado. Há batuqueiros que condenam os outros pelo erro de desvirtuar supostos preceitos da religião. No meu caso, relato o que eu vi. Não estou me posicionando. Creio que é por isso que o livro teve uma boa aceitação. Talvez, também, pelo estilo despojado, longe do jargão "antropologuês", embora sem perda de conteúdos interpretativos, o que possivelmente contribui para que as pessoas comuns possam lê-lo sem problemas. É um livro simples, pensado para ser simples, porque acho que tem que ser assim mesmo. Escrevi um livro para ser lido por todas as pessoas, e não dirigido especificamente a acadêmicos. Apesar disso, tenho ouvido de colegas da área dizerem que escrevi um clássico, do mesmo modo que outros autores escreveram sobre religiões de matriz africana de outros locais do Brasil.

IHU On-Line – De que maneira o negro é representado na história rio-grandense?

Norton F. Corrêa – A presença da população negra no Rio Grande do Sul é muito significativa, além de o trabalho escravo ter construído as bases da economia local. Acrescente-se a indiscutível importância da herança cultural legada ao contexto rio-grandense. Apesar disso, a cultura negra tem sido muito pouco estudada  o que não deixa de ser uma forma de ocultação. Mas há o caso de um historiador gaúcho bastante conhecido, Walter Spalding, que levou tal ocultação ao máximo: afirma que não houve racismo no Rio Grande do Sul simplesmente porque não havia negros!

Entretanto, as estatísticas da época a que se refere revelam que os negros eram quase 40% da população da então Província. Considero que a prática de ocultar também se deve ao racismo. O Rio Grande do Sul é um estado muito racista. E o desprezo em relação à figura do negro é projetado sobre suas práticas religiosas, que continuam sendo reprimidas. Tanto a ocultação como a repressão são formas de racismo. Mas ele pode se expressar de forma ainda mais sutil, como é o caso das campanhas da turma da ecologia contra os sacrifícios rituais de animais no batuque. A sutileza está em se escudar num argumento meritório: proteger os animais. Entretanto, é curioso que em um estado com um enorme rebanho bovino, suíno, ovino e centenas de matadouros, legais e ilegais, além de outras tantas centenas de sinagogas que cumprem práticas muito semelhantes, o zelo da turma ecológica recaia apenas sobre o batuque. Por que apenas nele?

IHU On-Line – Por que o senhor afirma que este livro lhe trouxe uma grande surpresa? Que surpresa foi esta?

Norton F. Corrêa – Porque eu não esperava uma aceitação tão grande do livro, seja pelos batuqueiros, seja pelos estudiosos. Os primeiros, talvez porque se vejam nele; e os segundos por ser uma fonte de informação antes praticamente inexistente. Algo que me deixa muito feliz é o fato de a maioria dos leitores ser os próprios batuqueiros.

Link - 
https://www.ihu.unisinos.br/?id=515787

TIKTOK ERICK WOLFF

https://www.tiktok.com/@erickwolff8?is_from_webapp=1&sender_device=pc